"Alta fidelidade", Nick Hornby
Na série "Life on Mars", versão americana inspírada no seriado original inglês (e com a mesma canção tema de David Bowie), toda quinta-feira no canal a cabo FX, um policial de 2008 é atropelado e, quando acorda, vai parar no ano de 1973. Confuso, desnorteado, ele vai agora procurar saber como foi parar ali e como fazer para voltar ao futuro, ao mesmo tempo em que tenta se adaptar a uma sociedade sem CDs e DVDs, sem computadores pessoais, sem telefones celulares... Logo no primeiro capítulo, ao buscar uma pista sobre um criminoso, nosso herói acaba entrando numa loja de discos de vinil, com centenas de exemplares, além de cabines para a escuta dos "long-playings". Maravilhado, ele diz a um colega policial que de onde ele vem lojas assim já não existem mais; e conclui, olhando para os LPs: "Tenho que me lembrar de levar alguns destes quando voltar".
Lembrei da cena ao ler semana passada, dia 18, uma notinha bem escondida no Segundo Caderno do jornal O Globo: naquele dia estaria sendo comemorado nos Estados Unidos o "Dia da Loja de Discos". E que, para marcar a data, o cantor e compositor Tom Waits estava lançando um disco (em vinil!). O compacto simples (nos Estados Unidos, single) fora gravado ao vivo no Fox Theatre, em Atlanta, em julho de 2008, e trazia duas músicas: "Lucinda" e "Ain't going down the well". Ainda segundo a nota, Tom Waits teria comentado o que achava da data: "As lojas de discos são um lugar mágico onde vou alimentar meus ouvidos. Não podemos deixar que elas acabem."

"Não podemos deixar que elas acabem". Sábias palavras, Tom. Apesar de possuir uma boa quantidade de músicas baixadas em MP3, confesso que sou um apaixonado pelos discos de vinil e até hoje os coleciono. Durante algum tempo, nos últimos anos, cheguei a pensar que as lojas pelas quais passei boa parte de minha adolescência e vida adulta iriam desaparecer - uma a uma elas foram sumindo, primeiro trocando os vinis por CDs; depois cedendo seu lugar para as grandes redes de departamentos, onde o vinil e o CD eram apenas alguns dos inúmeros produtos postos à venda. A lojinha da esquina, aquele lugar mágico onde eu ia alimentar meus ouvidos e experimentar novas sensações, não existia mais. Seria o fim?
Cada um de nós, apaixonados por música, sempre gostou de passar bons momentos dentro de uma boa loja de discos. Quem nunca deixou a namorada esperando e reclamando, enquanto pedia só mais um tempinho ali dentro, apenas para ouvir a última canção dos Smiths, o mais novo disco do Caetano, aquele disco fora de catálogo de David Bowie perdido no final de uma prateleira ou o caixote caríssimo de discos com gravações raras de Bob Dylan? Creio que todos temos, ou tivemos em algum momento de nossas vidas, aquela loja de discos de estimação, que era pra onde íamos quando sobrava algum dinheiro, pois estávamos sempre sem grana.
Minha loja de discos de estimação era perto de minha casa. Ficava na rua Uranos, na altura de Olaria, no subúrbio do Rio. Eu ficava ansioso por juntar uns trocados suficientes para ir lá. Numa época em que os CDs começavam a expulsar os discos de vinil das lojas, esta loja orgulhava-se de manter uma bela coleção de centenas de LPs. Ali eu encontrei pérolas como o primeiro disco da Banda Black Rio (que depois viraria item de colecionador nas feiras antenadas de Londres), além de clássicos de Neil Young, Creedence, Beach Boys, Buddy Holly, Billie Holiday e vários outros sons que fizeram parte de minha vida. Aos sábados de manhã um grupo de fãs idosos de rock n' roll se reunia ali para trocar ideias sobre música pop dos anos 50. Uma vez apareci por lá nesse dia, e acabei levando um LP de Jerry Lee Lewis depois de uma animadíssima conversa com os velhinhos roqueiros.
Um tarde dos anos 1990, não me lembro mais qual ano, passei em frente à loja num dia de semana. Ela estava fechada. Voltei na semana seguinte e tive a certeza - era o fim. Ela era um delicioso anacronismo em pleno subúrbio carioca, mas não resistira e fechara suas portas. Meu escape pelo delicioso mundo das sensações musicais daquela lojinha que se orgulhava de não chamar a atenção de ninguém que não fosse fã de música havia acabado.
Mas, que bom, não era o fim das lojas de discos. Elas estão voltando, aos poucos, bem lentamente. E a gravadora Deck Disk já anunciou que vai reabrir a última fábrica de vinis do brasil, em Belford Roxo. Parece que com a emergência das novas mídias, há espaço também para aquele objeto redondo, "preto com um buraco no meio" (como dizia Keith Richards a jornalistas que perguntavam como seria o próximo disco dos Stones) que nós, fetichistas do vinil, sempre curtimos. É mais ou menos como naquele filme do Woody Allen, "Igual a tudo na vida" em que a personagem de Christina Ricci seduz um rapaz dizendo mais ou menos que "não há como curtir uma gravação de Billie Holiday se não for num velho disco de vinil".
Por isso, a importância de um "Dia da loja de discos". E nos Estados Unidos, país que mais sofreu com os downloads de músicas na internet, que perdeu megalojas como a Tower Records (verdadeiro santuário dos fãs de música) e a Virgin Records de Nova York (esta transformada recentemente numa grande loja de roupas a preços módicos). Mas também o mesmo país em que só no ano passado mais de 2 milhões de discos de vinil foram vendidos. Apostando na onda dos produtos "vintage", artistas já lançam há algum tempo tiragens limitadas de seus discos em vinil, alguns contendo músicas não disponíveis no formato CD. Os fãs do formato agradecem.
Aqui no Brasil a notícia do "record store day", tirando alguns comentários em blogs e sites sobre música, como o da MTV, passou em brancas nuvens. Uma pena, mas é bom saber que ainda há lugares em que os discos resistem, seja num sebo como o Baratos da Ribeiro, seja na grande Modern Sound, a melhor loja do Rio e que continua de vento em popa. Estive em Belo Horizonte mês passado e fiquei deliciado com a ótima Disco Play, na rua Tupis, bem no Centro. E há muitas outras espalhadas em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza etc.
De minha parte, enquanto existirem estas lojas, eu as continuarei frequentando. Mesmo que um dia eu entre na última loja de discos que sobrar, peça ao vendedor aquela cópia do "Sticky Fingers", dos Rolling Stones, com a capa original cujo design e charme original - com aquele fecho ecler de verdade - nenhum arquivo baixado na rede pode chegar perto, e reservarei alguns momentos para ir à cabine e deixar que a música satisfaça minha alma, minha mente, meu espírito.