Certos filmes valem a ida ao cinema apenas por uma cena. Ela tem de ser
suficientemente forte para que não saia da mente do espectador após o fim dos
créditos. Ela tem que ser de tal forma especial que o fará lembrar dela sempre,
nas situações mais diversas. A trama do filme pode, ao longo dos anos, ir se
perdendo na memória, como em grande parte dos filmes. Mas aquela cena não. Ela
tem que possuir algo que mexerá de alguma forma com o público.
Numa palavra, ela tem que lhe arrebatar.
Foi o que senti recentemente, ao assistir o filme alemão
"Phoenix", dirigido por Christian Petzold e estrelado por uma atriz
em ascensão, Nina Hoss. A história é um drama de suspense sobre uma cantora de
cabaré judia, Nelly, que durante um atentado, é desfigurada na face ao final da
Segunda Guerra. Internada, ela recebe a ajuda de um cirurgião plástico que a
ajuda a ter um novo rosto - mas não igual ao que ela tinha. Apenas parecido.
A troca de rosto da personagem é uma metáfora para sua nova identidade. Perdida
numa Alemanha derrotada, num pós-guerra difícil e conflituoso, Nelly encontra
abrigo na casa de uma amiga, que a acompanha antes e durante a operação e
deseja que ela aceite ir para a Palestina (Israel ainda não havia sido criado).
Contudo, Nelly só pensa em reencontrar o marido, Johnny, também músico, e vaga
pelas ruas à noite, adentrando os cabarés em busca do homem que ama.
Numa das casas noturnas, apropriadamente chamada Phoenix (tal como na lenda do pássaro que ressuscita), ela finalmente encontrará o marido, mas ele não a reconhece. Johnny acha a mulher parecida com Nelly, mas para ele não há dúvidas de que a esposa está morta. Enquanto Nelly busca coragem para fazer com que o marido acredite ser ela de fato, Johnny arma um plano para que ela finja ser sua esposa, apenas para ganhar uma indenização do novo governo.
Aos poucos, Nelly se vê morando com o marido e disposta a aceitar
o plano de Johnny, apenas para estar perto dele. Alimenta a esperança, sem sucesso, de que o marido caia em si e a reconheça, mesmo com outro rosto. Pior, há indícios de que Johnny teve alguma culpa em relação ao
atentado que a desfigurou. Mas Nelly resiste a esse pensamento. Quer voltar
àquela antiga vida junto ao homem que acredita amar.
Pausa para falar de Weil e sua obra. Compositor judeu e alemão, ficou
famoso por suas canções e pela sua parceria com o dramaturgo Bertold Brecht,
como a "Ópera dos três vinténs". Com a ascensão do nazismo, emigra
para os Estados Unidos, onde irá compor músicas que serão letradas agora em
inglês, por parceiros americanos. "Speak low" é uma parceria com o
letrista Ogden Nash, composta originalmente para o musical da Broadway "A
touch of Venus".
Com o tempo, o musical não passaria de uma nota de rodapé na história da
Broadway, mas "Speak Low" se tornaria um clássico. Logo, aquela
melodia sinuosa elegante, com uma letra em que as palavras
"low" e "love" caminham juntas, num crescendo de intimidade
entre um casal ("Speak low, when you speak low, our moment is swift,
like shifts adrift were swept apart") seria gravada por inúmeros
cantores, como Billie Holiday, Tony Bennett, Ella Fitzgerald, além de grandes
do jazz instrumental. A primeira vez em que eu ouvi "Speak Low"foi na
voz de uma brasileira, Marisa Monte, em 1989. Era a última faixa do primeiro
disco de Marisa, meio obscurecida no LP após o megasucesso de "Bem que se
quis", mas bonita o bastante pra não passar desapercebida.
"Speak low", enfim, é uma música sobre amantes que sabem que dependem do tempo para amar. O tempo é tão velho, e o amor é tão leve; o
amor é ouro puro, e o tempo é um ladrão, susurra a letra. Ao desistir de
emigrar para a Palestina, Nelly encontra forças nesta canção, que a faz
reincorporar sua porção cantora. E é também o clássico de Weil que iluminará o
clímax do filme - a cena final.
O plano de Johnny, aparentemente, dá certo, mas o casal tem que fingir
para amigos e parentes que Nelly realmente havia sido resgatada, e somente
agora iria ao encontro de seu grande amor. Há a chegada na estação de trem,
diante de amigos, onde o casal representa um reencontro, com poucas palavras. Há
a ida à casa de um deles, onde, após um jantar, pedem para Nelly cantar,
acompanhada ao piano por Johnny.
E então...Nelly escolhe cantar "Speak low".
Ela caminha lentamente para a frente do piano, onde Johnny já está
sentado. Johnny toca os primeiros acordes. Nelly, nervosa, mas segura, inicia
os versos iniciais da canção. Alguns dos presentes estranham a tensão presente
entre os dois músicos. Súbito, através do canto de Nelly, Johnny para de tocar.
Parece finalmente perceber não estar diante de uma impostora. Ele olha para a
mulher e parece perceber tudo. Seria ela a Nelly verdadeira?
Não. A Nelly de antes da guerra não existe mais. Morreu, e tal qual a
fênix, ressuscitou com um novo rosto e uma nova identidade. Finalmente a
máscara impostora do marido cai, enquanto Nelly, lentamente, deixa a sala, o
piano e as pessoas ali presentes. Sai para viver sua nova vida
Alguns dias antes de assistir ao filme, vi num programa de televisão um
comentarista falar: "após a cena final de 'Phoenix', você nunca mais
escutará determinada canção da mesma forma".
Ele estava certo. E lembre-se: quando escutar de novo aquela canção, speak
low.
Um comentário:
Marginal Conservador, excelente matéria sobre Phoenix e a devastadora cena final com speak low. Tenho procurado o crédito do arranjo instrumental que se segue à performance de Nina Hoss e até agora não achei.
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