Há algum tempo atrás, eu estava dando uma aula sobre radiojornalismo no Brasil. Como não podia deixar de ser, falei um pouco sobre a Voz do Brasil, este programa que todas as rádios do Brasil apresentam obrigatoriamente desde a ditadura do Estado Novo - lá se vão mais de sete décadas. Muitos acham a Voz um anacronismo, outros a defendem, mas não quero aqui tecer considerações sobre o programa. Apenas me lembrei que quando comecei a falar do programa, um grupinho de alunos começou a entoar o cântico de abertura de "O Guarani", o clássico de Carlos Gomes, na inacreditável e populista versão radiofônica atual, mezzo Olodum, mezzo Carlos Gomes. Dei uma risada, "elogiei" a desafinação da galera e continuei com a aula. Mais tarde lembrei-me que o "Guarani" já fizera parte de minha vida em outra situação. Uma situação, digamos...mais constrangedora.
Eu era adolescente, devia ter uns 17 anos ou menos, e um amigo, o Renê, me chamou para assistir ao espetáculo de uma orquestra sinfônica no Social Ramos Clube, bem perto de onde morávamos (e moro até hoje), em Ramos. Desconfiei. Uma orquestra de verdade no Social ?!?! Pra mim, orquestras só tocavam no Teatro Municipal, no Centro do Rio ou outros lugares privilegiados. O que dera naqueles caras para virem tocar no subúrbio?
Bem, apesar do estranhamento inicial, topei o programa na hora. E só acreditei no que vi quando adentrei no salão do clube e vi aqueles homens de terno, as poucas mulheres super bem-vestidas, todos concentrados nos seus instrumentos. O programa? "O Guarani", de nosso "selvagem da ópera" (como foi chamado pelos italianos): Carlos Gomes.
A salão não ficou lotado - muitos devem não ter acreditado e ficaram em casa, pensei. Havia apenas metade dos lugares ocupados. Felizes, eu e meu amigo pudemos escolher dois bons lugares. Sentamos e nos preparamos para o concerto. Só havia um problema - era quarta-feira, dia de futebol de salão na quadra ao lado, a menos de 10 metros do palco.
Começa o show (perdão, o concerto). A orquestra toca e o som está inesperadamente muito bom. O público, antes reverencioso em excesso, sorri quando a orquestra toca a parte mais conhecida da ópera - sim a mesma cuja vinheta virou até tema da "Voz do Brasil". Muitos ali jamais presenciaram um concerto de música clássica de perto.
Mas nem tudo é perfeito. Com dez minutos de concerto, dá para ouvir nitidamente algumas trocas de gentilezas entre os times do futsal: "Passa a bola, seu f.d.p."; Agarra essa agora, seu %#**#"; "Não vai marcar não, seu &*##@". O maestro, que já olhara, assustado, para a janela, interrompe o concerto e pede providências. Na platéia, olhares atravessados, risinhos abafados, comentários sobre a falta de educação do suburbano etc.
Minutos depois, a orquestra volta a se apresentar, apenas para parar de novo depois de 5 minutos. Um gol na quadra faz todo o time gritar, e o maestro a se enervar. Ele vai até o "diretor artístico" do clube e ameaça encerar o concerto. Sinto a vontade de enterrar a cabeça no chão, igual a um avestruz, de vergonha.
Depois de alguns minutos de discussão, o responsável pelo clube constata o óbvio e manda encerrar o futebol, sob protestos de alguns jogadores.
O concerto recomeça e desta vez vai até o final, sem transtornos.Estou muito feliz, vou guardar tudo na memória como uma recordação de uma noite cultural intensa.
Intensa? Ainda faltavam os aplausos.
O público, mais habituado com espetáculos de samba e rock, faz um verdadeiro carnaval, maravilhado com o que vira. Gritinhos de "Mais um!" e "U-hu!" são ouvidos. O maestro dá um sorriso amarelo, agradece à platéia e se retira. Cai o pano.
"O público ainda vai apreciar meus biscoitos finos"
Oswald de Andrade.
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