quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Free Nelson Mandela: 20 anos depois

"Ele libertou todos nós do apartheid. Antes, nunca nos misturávamos. Brancos, negros e mestiços vivíamos separados, mas hoje nos misturamos todos e somos uma só nação"
(Elizabeth Davies, política sul-africana)

"You're so blind that you cannot see"
(Trecho da música "Free Nelson Mandela", The Special A.K.A.)

Este mês o mundo parou para comemorar os 20 anos da libertação de um homem negro, que ficou 24 anos preso numa cela de proporções mínimas na África do Sul, condenado a trabalhos forçados por discordar e críticar o apartheid - o nefasto regime de segregação racial que durante muitas décadas separou brancos e negros num mesmo país. No dia 13 de fevereiro de 1990, o homem saiu da cadeia e contemplou a liberdade pela qual ele tanto esperara. À sua frente, uma multidão de sul-africanos, negros como ele, que o seguiram pelas ruas da cidade, cientes de que, naquela hora, suas vidas poderiam mudar. O homem parou em frente a uma praça, olhou a multidão e fez um gesto com o punho fechado para o ar. Hoje, no mesmo lugar, uma estátua dele com o mesmo gesto está erguida ali.

Três anos depois, o apartheid encontrava seu fim na África do Sul. Em 1995, o ex-presidiário era eleito presidente da África do Sul e ganhava o prêmio nobel da paz. Estamos falando de Nelson Mandela (ou "Mandiba", seu nome de clã e como é chamado carinhosamente pelos africanos), e se o mundo parou para lembrar dos 20 anos de sua libertação é porque o considera um dos maiores líderes políticos que o mundo conheceu, da segunda metade do século XX até os dias de hoje.

Um dos filmes em cartaz nos cinemas, "Invictus" , de Clint Eastwood, narra como Nelson Mandela (brilhantemente interpretado por Morgan Freeman) enfrentou o ódio racial entre brancos e negros pregando a tolerância e o respeito mútuos. Logo numa das primeiras cenas, ao tomar posse como novo presidente, ele nota as salas dos funcionários brancos vazias - haviam arrumado seus pertences acreditando que seriam preteridos por negros. Mandela reúne todos os funcionários - brancos, negros e mestiços - e diz que está ali para trabalhar com todos, sem restrições, acreditando apenas na competência de cada um, acima da cor da pele. Lembrem-se de Martim Luther king e seu famoso discurso, "I have a dream...". Numa sequência, o retrato de um líder.

Mandela conseguiu unir uma nação em torno de um time desacreditado, a seleção de rugby (símbolo, para a maioria negra, do regime opressor) e não mediu esforços para que eles chegassem à final da Copa do Mundo. Uma frase do capitão do time de rugby, ao visitar a cela de Mandela na prisão em que estivera preso, sintetiza a grandeza do líder sul-africano: "Como este homem conseguiu ficar mais de 20 anos preso neste cúbiculo e ainda consegue perdoar quem o colocou aqui?"

"Invictus" presta de fato uma bela homenagem a Nelson Mandela, mas eu queria era lembrar que, muito antes do cinema, em 1984, quando ainda estava preso, Mandela era agraciado com um libelo em forma de música vindo da Inglaterra, ainda antes de sua libertação, por meio da canção "Free Nelson Mandela", do grupo multirracial Special A.K.A. (ex-Specials), integrante do movimento Two Tone - dois tons, preto e branco. As bandas da Two Tone começaram a surgir a partir de 1979, no vácuo deixado pela fúria do movimento punk, e combinaram a anarquia e energia do punk com um gênero musical próximo do reggae, o dançante ska, difundido na Inglaterra por imigrantes jamaicanos. O sucesso das novas bandas foi imediato e influenciou até medalhões do rock "branco", como o Clash, que regravou o clássico jamaicano "Police and thieves".

Ou seja, enquanto antes de Mandela chegar ao poder era inconcebível ver negros e brancos apertando as mãos na África do Sul, na Inglaterra brancos e negros uniam-se para balançar o cenário musical com canções politizadas e extremamente dançantes. A metrópole reunindo pretos e brancos através da música, enquanto a ex-colônia insistia num regime de segregação racial. São as ironias da história contemporânea.

Na gravação de "Free Nelson Mandela" - com o som da Two Tone já em seu crepúsculo, sendo substituído nas paradas pelos grupos new romantics, ou simplesmente pelo som que seria chamado mais tarde como "new wave" -, o compositor Jerry Dammers, autor da música, contou no estúdio com membros originais de bandas famosas do movimento, como Specials, The Beat e Bodysnatchers. Nos vocais de apoio, ajudaram a criar uma canção ao mesmo tempo politizada e de irresistível apelo dançante.

"Free Nelson Mandela" ("Libertem Nelson Mandela") fez milhares de jovens ingleses cantarem pela libertação do líder negro, quando ainda estava preso. A maioria das bandas que compunham a Two Tone eram politizadas, e Jerry Dammers, investido no movimento anti-apartheid. "Free Nelson Mandela" tornou-se um sucesso e funcionou como um verdadeiro grito pela libertação do líder sul-africano. Muitos destes jovens ingleses que dançavam a música em clubes e afins nunca haviam ouvido falar em Mandela e cantavam em coro nos shows da banda versos como "you're so blind that you cannot see", que poderiam estar se referindo aos próprios ingleses ou ao mundo ocidental - alheios à desgraça sul-africana.

Felizmente, a desgraça, ou o apartheid, estava também em seus últimos momentos. Em 1993 era extinto o regime que por séculos perdurou, e em 1995 Mandela estaria à frente de milhões de compatriotas para fazer história.


Nelson Mandela - The Special A.K.A.

Free Nelson Mandela
Free Free
Free Free Free Nelson Mandela

21 years in captivity
Shoes too small to fit his feet
His body abused, but his mind is still free
You're so blind that you cannot see

Free Nelson Mandela

Visited the causes at the AMC
Only one man in a large army
You're so blind that you cannot see
You're so deaf that you cannot hear him

Free Nelson Mandela

21 years in captivity
You're so blind that you cannot see
You're so deaf that you cannot hear him
You're so dumb that you cannot speak

Free Nelson Mandela

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Você já esteve em Frondosa? Os espiões, do Verissimo, sim

Sou daqueles que sempre levam um livro na mochila para qualquer viagem que faça. A trabalho ou lazer, sempre há a possibilidade de uma chuva impiedosa confinar a gente dentro de casa ou no hotel, e então um bom livro surge como saída acalentadora. Neste carnaval não foi diferente. Nos intervalos da folia, li o romance "Os espiões", de Luis Fernando Verissimo, autor que na opinião deste blogueiro deveria tornar-se leitura obrigatória em escolas de de todo o país, apenas para mostrar a nossos jovens como a boa literatura pode ser algo divertido e prazeroso.

"Os espiões" é um romance que trás de volta aos leitores uma das características marcantes do escritor gaúcho: misturar personagens típicos do cotidiano, daqueles que qualquer um de nós poderíamos encontrar numa mesa de bar - e o bar é um dos cenários-chave da trama - com um enredo mirabolante e com inúmeras citações cultas - da mitologia grega ao pintor italiano De Chirico, de considerações hilariantes sobre literatura a um suposto crime na fictícia cidade de Frondosa - local para onde os amadores espiões criados pelo escritor se aventuram em busca da resolução de um enigma - ou seja, a estranha carta que o protagonista recebe certo dia: ali, uma mulher chamada Ariadne promete contar sua história e depois se matar.

Em entrevista recente, Verissimo disse que só tinha a curiosa primeira frase do livro - "Formei-me em letras e na bebiuda busco esquecer" - antes de sentar e escrever todo o romance. Aos poucos os personagens e situações foram surgindo.

Motivado pela leitura do blog Todoprosa, do jornalista e escritor Sérguio Rodrigues, no qual há a seção "Começos inesquecíveis", transcrevo abaixo o primeiro parágrafo de "Os espiões": um ótimo exemplo de técnica literária, erudição e humor. Verissimo apresenta o protagonista e dá o tom da trama que virá nas próximas páginas.

Leiam e divirtam-se, então. (Só não precisam concordar com a excentricidades literárias do protagonista..ainda que motivadas por uma bela ressaca...rs):

"Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora, com a frase "Vê se isso presta". A enxurrada de autores querendo ser publicados começou depois que um livrinho nosso chamado Astrologia e Amor - Um Guia Sideral para Namorados fez tanto sucesso que pérmitiu ao Marcito comprar duas motos novas para sua coleção. De repente nos descobriram, e os originais não param mais de chegar. Eu os examino e decido seu futuro. Nas segundas-feiras estou sempre de ressaca, e os originais que chegam vão direto das minhas mãos trêmulas para o lixo. E nas segundas-feiras minhas cartas de rejeição são mais ferozes. Recomendo ao autor que não apenas nunca mais nos mande originais como nunca mais escreva uma linha, uma palavra, um recibo. Se Guerra e Paz caísse na minha mesa numa segunda-feira, eu mandaria seu autor plantar cebolas. Cervantes? Desista, hombre. Flaubert? Proust? Não me façam rir. Graham Greene? Tente farmácia. Nem le Carré escaparia. Certa vez recomendei a uma mulher chamada Corina que se ocupasse de afazeres domésticos e poupasse o mundo de sua óbvia demência, a de pensar que era poeta. Um dia ela entrou na minha sala brandindo o livro rejeitado que publicara por outra editora e o atirou na minha cabeça. Quando me perguntam a origem da pequena cicatriz que tenho sobre o olho esquerdo, respondo:
- Poesia.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Crianças fazem jornalismo: está no ar a Jacaré FM

Eles têm apenas de quatro a seis anos de idade. E já são jornalistas! Toda semana, crianças de uma escola municipal de São Paulo elaboram as pautas, editam as matérias e fazem a locução de reportagens para uma rádio cujo nome também escolheram: Jacaré FM. Apesar de veiculada somente na internet, tem audiência cativa entre professores e coleguinhas. A boa notícia é que os repórteres mirins tomaram gosto pela experiência e este sucesso se refletiu nos estudos em sala de aula: o desempenho das crianças em língua portuguesa melhorou sensivelmente após a experiência, segundo o colunista Gilberto Dimenstein, que se mostrou entusiasmado em sua coluna na rádio CBN.

Iniciativas como essa num país de tantos contrastes como o Brasil não deixam de nos causar alívio e uma certa dose de esperança, ainda que a realidade brasileira não ajude. Ontem mesmo, em uma crônica de Zuenir Ventura, no Globo, "Como (não) formar leitores", o jornalista mostrava-se preocupado com a falta de hábito de leitura no Brasil, um país em que mais de 70 milhões de pesoas não leem. É muita gente privada do prazer de ler. Segundo Zuenir, um dos motivos estaria na falta de renovação das listas de livros que os adolescentes são obrigados a ler na escola, listas que misturam clássicos indiscutíveis como "Brás Cubas", de Machado de Assis, ao lado de prosas datadas como "Iracema", de José de Alencar". Muitos livros indicados indevidamente podem causar no jovem leitor a sensação de que a leitura é uma coisa muito chata. Para Zuenir, não seria hora de receitar aos nossos alunos textos mais modernos como os de Rubem Braga, Fernando Sabino ou Luís Fernando Verissimo? Assino embaixo.

Porém, esta semana, o Jornal Nacional fez uma reportagem que é uma ótima notícia para quem preza o hábito de ler. Dia 8 de fevereiro foi inaugurada, no exato local onde havia o famigerado Complexo Penitenciário do Carandiru - sim, aquele mesmo do filme que você deve ter assistido, cujo massacre em 1992 resultou na morte de 111 presos pelas forças de repressão do estado de São Paulo - a Biblioteca São Paulo, uma livraria composta pelo que há de mais moderno no incentivo á leitura. Em formato de uma moderna livraria, dá atenção especial para as crianças, com prateleiras onde os livros infantis ficam dispostos de forma que qualquer pequeno leitor possa manuseá-los antes de começar a leitura. A tecnologia não foi esquecida, com mais de 100 computadores e até máquinas especiais próprias para cegos, que escaneiam os livros e fazem a leitura sonora de revistas e livros para aqueles não enxergam.

Como deu pra perceber nos exemplos de Zuenir e da nova biblioteca, a tecnologia pode ser uma ótima aliada na conquista de novos leitores. É isso que vem fazendo o sucesso da Jacaré FM, ao apostar no auxílio dos meios de comunicação para melhorar o rendimento escolar das crianças, tornando a experiência do ensino mais lúdica e instrutiva. Longe de considerar o computador, a televisão e o rádio como "inimigos" ou "adversários" do ensino, educadores já começam a verificar que a aliança com as mídias - analógicas ou digitais - pode trazer boas novidades às escolas.

Ainda segundo Dimenstein, a exxperiência inovadora desta escola começa a se refletir também na graduação. Recentemente a USP criou o curso de Educomunicação, que nada mais é do que o professor usar os meios de comunicação na aprendizagem. Poderíamos dizer que não é uma experiência nova - há muitos profesores em diversos cantos do Brasil que costumam trazer o jornal, a televisão ou o rádio para a sala de aula a fim de complementarem de forma criativa suas aulas. Mas é algo que pela primeira vez ganha o escopo de um curso superior. Ou seja, num tempo em que as novas mídias digitais conquistam cada vez mais espaço na preferência dos jovens, por que não usar destas mídias emn sala de aula, como ferramenta de ensino, em vez do ultrapasado giz e quadro negro para ensinar a norma culta?

A experiência da Jacaré FM mostra que a iniciativa tem tudo pra dar certo. Saudemos então os pequenos repórteres de São Paulo, e que outras escolas Brasil afora não tenham medo de copiar tão bela iniciativa.