Eu deveria ter uns 19 ou 20 anos quando assisti a Rashomon no cinema. Foi no antigo Cineclube Estação Botafogo, muito antes de virar o complexo de cinemas do Grupo Estação, no Rio e em outros estados. Saí de casa com o tempo bom e durante a viagem de ônibus começou a chover forte. Quando saltei em Botafogo, caía um temporal. Corri para uma marquise e a duras penas consegui chegar até o cinema, todo molhado. Paguei o ingresso como se nada houvesse acontecido, enquanto a bilheteira observava meu estado. Entro no cinema. As luzes se apagam. Constato que o começo da película também mostra uma chuva impiedosa - só que no Japão antigo. Em poucos minutos eu já estava totalmente hipnotizado pela força daquele filme que, em 1951, mostrou o brilho do cinema japonês ao resto do mundo e revelou um cineasta que se tornaria um dos maiores do século XX - Akira Kurosawa.
Os 100 anos que Kurosawa estaria fazendo em 2010 (ele morreu em 1998) estão sendo amplamente comemorados em todo o mundo do cinema. Vários grandes centros já programaram mostras com retrospectivas de filmes do cineasta, o que só demonstra sua importância. Eu poderia falar aqui de várias de suas obras, sua influência em cinematografias aparentemente tão díspares do Japão (como o clássico faroeste "Sete homens e um destino", todos sabemos, foi adaptado de "Os sete samurais"; ou "Por um punhado de dólares", que Sérgio Leone copiou nitidamente do sucesso "Yojimbo"), ou mesmo suas adaptações de clássicos shakespeareanos, como "Trono manchado de sangue" (Macbeth) e "Ran" (inspirado em Rei Lear). Mas vou me deter mesmo em Rashomon e o intrigante debate que o filme oferece: afinal, qual o limite de uma verdade?
Rashomon apresenta logo de cara um assassinato. Através de flasbacks, a trama então mostrará como este crime é relatado por meio de quatro personagens: um lenhador, um sacerdote, um bandido e a esposa de um samurai assassinado. Nenhuma versão entra em sintonia com a outra; todas são contraditórias. Quem ali estaria falando a verdade? Haveria, no entanto, uma verdade inquebrantável neste e em outros casos?
O mesmo pode ser aplicado ao jornalismo moderno e uma de suas principais regras: a objetividade. No jornalismo, a objetividade seria o dever do jornalista de se ater exclusivamente aos fatos, ou melhor, relatar o fato tal qual acontecera. No entanto, se pedirmos a dois jornalistas que apurem a notícia de um crime com testemunhas - tal qual em Rashomon - cada um voltará à redação tal qual os personagens do filme: os dois trarão suas próprias versões da mesma história.
Ou seja, não há verdade absoluta, tanto na arte do cinema como na aparente objetividade dos jornais. O que ocorre é que os jornais vivem de algo que os faz respeitados pelo leitor - sua credibilidade. A capacidade que eles têm de fazer com que seus relatos sejam verossímeis. Para isso já foram inventadas diversas teorias que elevariam a objetividade à uma suposta verdade infalível, como a teoria do espelho - furadíssima hipótese na qual o jornalismo refletiria a todos nós, tal como um espelho, o fato como ele realmente aconteceu.
Hoje, até o ótimo e indispensável "Dicionário de Comunicação", de Rabaça & Barbosa, demostra que a objetividade, na realidade, não existe. E conclui de forma digna: seria muito mais correto os jornais falarem em honestidade de informação do que em objetividade.
Então, sejamos mais críticos com as notícias que os jornais nos levam diariamente. Não digo para que deixemos de acreditar nos jornais; mas sim levarmos em conta que o jornalismo mais sério não está preocupado em impor ao leitor uma suposta verdade que sabemos inexistente. Mas sim apostar em diversos pontos de vista - dando ao fato o direito ao contraditório, ouvindo os dois lados de cada história, outra regra básica do bom jornalismo - para que o leitor tire sua própria conclusão.
Ou seja, como Kurosawa prova em Rashomon, cada um tem a sua própria verdade.
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