A primeira vez que assisti "Metrópolis" foi há mais de 20 anos. Eu tinha 18 anos e estava me preparando para fazer o vestibular para Comunicação. Como todo jovem de 18 anos, estava descobrindo coisas novas, entre elas o cinema e sua história. Na época, o cinema Estação Botafogo (que ainda se chamava "Cineclube Estação Botafogo") abriu um curso sobre a história do cinema, ministrado pelo ex-cineasta Pedro Camargo. Apesar de curtir cinema desde criança, foi durante este curso que me tornei cinéfilo, passando desde então a querer conhecer a história mundial do cinema e todas as suas fases, seus clássicos, seus grandes diretores etc. Vários clássicos foram mostrados ali, como "Encouraçado Potenkim", "Intolerância", "Cidadão Kane" (que vi pela primeira vez no exato dia em que completei 18). Nas aulas sobre o expressionismo alemão, dois filmes me impressionaram: "O gabinete do dr. Caligari" e "Metrópolis".
Claro que o professor não mostrou o filme todo, mas o pouco que vi naquela aula me impressionou. É incrível como Lang conseguiu dar realismo a um filme de ficção-científica ambientado em 2026, com aquele planos gerais da cidade futurista e ainda os milhares de extras contratados para a produção. O filme narra a história de uma sociedade dividida em duas classes. Acima do solo, a classe dominante, com sua burguesia e caprichos capitalistas. Nos subterrrâneos da cidade, vivem milhares de pessoas que - numa crítica clara à opressão da sociedade industrial, tal como Chaplin iria fazer depois em "Tempos modernos" -, vivem em condições mínimas, obrigadas a trabalhar o dia inteiro acertando as máquinas e os ponteiros para que a cidade de cima não entre em pane. A trama começa a se definir quando o filho de um empresário e industrial, "dono" da cidade, atraído pela entrada em cena de uma bela mulher, resolve ir atrás dela nos subterrâneos. Lá, ele trocará de lugar com um operário, e sofrerá na pele as rígidas normas do trabalho massacrante até encontrar a moça, que é uma espécie de líder dos "de baixo".
Ao saber disso, e com a convicção de que a moça planeja uma tomada de poder utilizando o povo subterrâneo, o pai do rapaz chama um cientista para idealizar e construir um robô à imagem e semelhança da moça, a fi de que esta semeie a discórdia entre os revoltosos e acabe com qualquer ideia de revolução. Mas o cientista tem planos ainda mais delirantes para sua criação...
"Metrópolis" foi então o filme mais caro da história do cinema alemão, e teria impressionado até um jovem político chamado Adolf Hitler, que convidou Lang para realizar filmes ligados à ideologia nazista. A mulher do diretor, Thea Von Harbou, autora do romance que deu origem ao filme e coautora do roteiro em parceria com o marido, aceitou o projeto. O marido não: o casamento terminaria ali. Lang não concordou e foi para Paris, de onde mais tarde, como recrudescimento do nazismo, partiria para os Estados Unidos, onde continuou sua carreira e realizou vários clássicos, como "Fúria".
Os pouco mais de 20 minutos acrescentados à obra deram mais sentido ao filme original, ficando ainda melhor. Numa época em que ainda não havia o procedimento hoje conhecido como "director's cut", em que filmes cortados à revelia do diretor na época do lançamento são mais tarde relançados contendo a suposta "versão original" (e quando o processo começa a se banalizar), o diretor alemão, se vivo estivesse, com certeza se emocionaria com a versão de seu filme quase completo num grande teatro. Ou seja, quem esteve ali no Municipal com certeza viu o filme numa versão melhor do que aquela mostrada em 1927, já que em muitos países, como nos Estados Unidos, os produtores cortaram várias cenas para que a exibição atendesse aos formatos de duração de um filme à época.
Muitos que veem hoje o filme criticam seu final conciliador, no qual o líder dos operários aperta a mão do empresário e dirigente máximo da cidade futurista, enquanto os letreiros salientam que "o mediador entre a cabeça e as mãs deve ser o coração". Há ali uma crítica ao poder das máquinas na sociedade industrial, que teriam derrubado o sentimento humano e transformado todos em seres automatizados, ou "robôs" - vale conferir as cenas da multidão se preparando para a troca de turno no trabalho, com movimentos perfeitamente sincronizados, com máquinas.
Eu prefiro ressaltar a importância do filme para a cultura cinematográfica e pop que viria nas próximas décadas - Metrópolis" inspirou de Chaplin a "Blade Runner", rendeu uma versão colorizada e com trilha rock n' roll nos anos 1980, inspirou videoclipes de artistas como Queen e Madonna, quadrinhos, moda, além de uma infinidade de filmes de ficção-científica ao redor do mundo. O mais importante: o filme continua absolutamente moderno em sua plenitude.
Após a exibição do filme e os aplausos efusivos do público do Teatro Municipal, naquela noite de quarta-feira, não pude lembrar de alguns teóricos da Escola de Frankfurt, que viam os produtos da comunicação de massa (tais como o cinema) como um indício da "derrocada da cultura em mercadoria": uma cultura que havia perdido sua autenticidade e sua "aura" de fruição. No entanto, o tempo passa e hoje as fronteiras que demarcavam as culturas erudita e popular estão cada vez menos nítidas. O que diriam o aristocráticos pensadores da Escola caso pudessem conferir o filme do modo que foi exibido no teatro? Ora, a exibição de um filme derivado de uma arte popular e "de massa" num ambiente ligado à grande arte como o Teatro Municipal do Rio de Janeiro é apenas um exemplo de que a arte - popular ou erudita, alta ou baixa, aristocrática ou de massa -, e tantas outras definições erráticas que perpassaram os séculos anteriores não deve estar ligada a considerações redutoras. Uma obra-prima é uma arte que transcende sua época e continua influenciando gerações e gerações de indivíduos nas décadas seguintes. E "Metrópolis" é um perfeito exemplo. Aliás, em qualquer mídia: com o anúncio do lançamento da versão remasterizada em DVD e Blu Ray, o apreciador de um bom filme poderá conferir que em qualquer ambiente "Metrópólis" continuará luminoso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário