Tenho andado distraído, impaciente e indeciso...Eu poderia repetir os versos de Renato Russo em "Quase sem querer" pra justificar o meu lapso em não ter escrito até agora nada sobre os 50 anos de vida que o cantor e compositor da Legião Urbana estaria fazendo agora em 2010. A data tem sido lembrada em inúmeros sites e jornais, e homenagens àquele aque foi um dos maiores ícones do rock brasileiro dos anos 80 não faltam. Algumas originais, como o livro organizado pelo poeta Henrique Rodrigues - "Como se não houvesse amanhã", com contos inspirados nas canções mais emblemáticas da Legião - e outras duvidosas, como a iniciativa de juntar num CD gravações póstumas de Renato cantando "em parceria" com artistas de hoje - mesmo que algumas gravações novas soem bem, fica a dúvida se o artista - que detestava coletâneas - autorizaria tais versões.
Bem, há vários livros contando a vida de Renato e a história da Legião Urbana. Quem quiser escutar mais de suas canções, os CDs continuam todos em catálogo (há a previsão de serem lançados também em vinil!) e vendendo bem em plena era dos downloads gratuitos. Então, peço licença para trazer de volta a série "Essa música me lembra uma história", com um fato que me ocorreu quando adolescente e que teve uma música da Legião como coadjuvante. O ano: 1987. A música: "Faroeste caboclo".
Eu tinha 17 anos e o Rock in Rio, dois anos antes, impulsionara o mercado nacional para as bandas de rock tupiniquins. De uma hora pra outra, centenas de bandas surgiram e muitas de repente tinham a felicidade de ouvir aquela gravação feita de modo rudimentar, dentrode uma garagem, numa fita cassete, tocando nas rádios. Em Niterói, A Rádio Fluminense FM, autointitulada "Maldita", só tocava rock e era venerada por todos que se entusiasmavam com as novidades do gênero. Outro point roqueiro da cidade era o Circo Voador, na Lapa, ounde eu já tinha ido algumas vezes. E em meados daquele ano tivemos a noticia de que a Legião, prestes a lançar seu terceiro disco, iria tocar novamente no Circo. Mesmo sendo dia de semana (uma quarta-feira) não dava pra deixar de ir. Então, seguimos eu, meu irmão e um amigo para o Circo.
Falava-se que o gruipo iria testar algumas músicas novas junto a plateia, que naquele dia era bem peculiar. Na verdade tratava-se de uma dobradinha entre a Legião Urbana e o grupo paulista de punk-rock Cólera, e por esta razão havia muitos punks por lá. Não eram "de butique", eram punks reais e estavam mais lá por causa do Cólera do que da Legião, a quem muitos acusavam de estar ficando "pop demais".
Por volta das 23h a Legião entrou no palco. Renato usava botas pretas, semelhantes às de muitos punks presentes e um coturno militar. Saudou a plateia e a banda começou a tocar. Após uma das primeiras músicas, o cantor grita para o público:
- Vamos comemorar. Hoje morreu o inimigo do Brasil!!
- Yeah!! Repetimos todos, e a banda atacou de mais um sucesso.
Eu, no entanto, fiquei preocupado: quem seria o tal "inimigo do Brasil" que havia morrido? Imaginei que muitos ao meu lado que gritaram yeah! também desconheciam a resposta.
Um cara que estava próximo tirou a dúvida: era o dia da morte do general Médici, ex-presidente da república durante a ditadura. Durante seu governo o Brasil passou por um dos períodos mais truculentos, com censura-prévia à imprensa, torturas e exílios. Custei a sacar a ironia de um cantor de rock comandando uma multidão de punks de coturno e "comemorando" a morte de um general. O melhor na hora, foi repetir as palavras de Jagger, it's only rock n' roll but I like it e curtir o resto do show.
Lá pelo meio do show Renato avisa que a banda vai tocar uma música pela primeira vez no Circo, e que estaria sendo testada em formato novo. Começam a ser ouvidos uns acordes lentos do violão e os primeiros versos:
"Não tinha medo o tal João de Santo Cristo, era o que todos diziam quando ele se perdeu..."
O começo lento, acompanhado na bateria de Bonfá por instrumentos típicos do Nordeste, como o triângulo, fizeram com que alguns punks vaiassem. Mas logo as sutis marcações e viradas da longa canção, alternando forró, pop, punk rock, começaram a conquistar a todos. E havia a letra, sensacional. A epopéia de um tal João de Santo Cristo, apaixonado por Maria Lúcia e levado ao crime por um tal de Jeremias - com um clímax que, como nos bons faroestes, levava a um duelo entre mocinho e vilão, desta vez no Planalto Central de Brasília.
A letra era longa e emocionante. Parecia que todos se viram um pouco naquele personagem que se "perdia" em busca de uma identidade e um trabalho dignos em terras brasileiras. Ao final da canção, aplaudimos muito e senti que era lançado ali um novo clássico da Legião.
Novo? Não é bem assim. "Faroeste caboclo" é do tempo em que Renato, antes de formar a Legião Urbana, se apresentava em Brasília sob a alcunha do "Trovador solitário", munido apenas de voz e violão - como nos primeiros tempos de seu ídolo Bob Dylan. Mas que só naquele outono de 1987 estava sendo gravada.
Uma semana depois,"Faroeste" invadiu o dial radiofônico e foi um sucesso instantâneo. Curioso é que na época, apenas dois anos depois do fim da ditadura, algumas emissoras ainda praticavam a autocensura em suas programações, e no caso da música de Renato algumas inseriram um apito nas muitas passagens com palavrões, tornando o efeito risível. Logo, o ridículo da censura foi mandado às favas e em pouco tempo jovens do Brasil inteiro cantavam a odisseia de João de Santo Cristo. Com os palavrões.
Eu estava ainda fazendo o segundo grau (sorry, nível médio, mas naquele tempo o nome era outro) e era muito interessante ver nos intervalos das aulas do colégio grupinhos em toda parte (alguns levavam violões) tentando cantar de ponta a ponta a letra quilométrica. Dava pra notar: "Faroeste caboclo" havia virado uma febre.
Quanto a mim, depois de tanto tempo, penso que a Legião, a música e a piada de Renato no palco me ajudaram a cravar Comunicação no vestibular que eu faria dali a alguns meses. Pois uma coisa que aprendi naquele dia era que eu não queria mais ficar desinformado sobre o mundo. Eu queria saber dos acontecimentos e, se possível, estar no meio deles. Algum tempo depois, aprovado no vestibular, eu tinha certeza que seguiria em frente no jornalismo.
Uma escolha que Renato Russo, numa noite perdida dos anos 80, no Circo Voador, ajudou a tornar realidade.
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