quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sobre ateus, fumantes e pautas mal apuradas

"A imprensa existe para o bem do público, não somente para entreter e ganhar dinheiro. Nossa função principal é dar aos espectadores a melhor versão possível da realidade, que é um conceito simples e muito difícil de se alcançar" (Carl Bernstein)


Segunda-feira, 03 de maio, foi comemorado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. A julgar pelos constantes ataques que volta e meia os meios de comunicação vem recebendo aqui e na América Latina, é uma data que deve ser lembrada sempre, e não somente apenas um dia do ano. Nosso jornalismo não é perfeito, e volta e meia erra na ânsia desenfreada pelo furo de reportagem; mas é preferível uma imprensa imperfeita a uma imprensa controlada, como é comum nos regimes totalitários.

A respeito disso, este blog não poderia deixar de comentar uma pisada na bola de muitos jornais de grande imprensa brasileira, que repercutiram erroneamente uma história falsa e mal apurada: a notícia de que o candidato à presidência da República, José Serra, teria comparado fumantes a ateus.

A notícia, divulgada semana passada, mereceu um reparo na segunda-feira, pela agência que a divulgara: a RBS, do Sul. Na tarde de segunda-feira, todos os sites, blogs e jornais sérios corrigiram as inverdades sobre o discurso de Serra no encontro evangélico em Santa Catarina do dia 1º de maio (nem todos, que fique claro: como estamos em ano eleitoral, é claro, alguns "se esqueceram" de corrigir). Vejamos a mea culpa da RBS:

“Diferentemente do que informou este site na reportagem “José Serra participa de encontro religioso em Santa Catarina” (01/05/2010 – 20h39min), o ex-governador de São Paulo e pré-candidato à Presidência da República, José Serra (PSDB), não se referiu a fumantes como pessoas “sem Deus”. Na verdade, o discurso do político não relacionou diretamente o fumo com a religião. Em um primeiro momento, Serra citou passagens bíblicas à multidão reunida em Camboriú e disse que a frase “Que tenham vida, e a tenham em abundância” está ligada à qualidade de vida e não apenas a ações para prolongar a vida das pessoas. Em seguida, citou programas desenvolvidos nas gestões dele frente ao governo de São Paulo e ao Ministério da Saúde, entre eles o de combate ao fumo".

Ajudou alguma coisa? Pouco, na verdade: o estrago já estava feito e repercutiu em toda a imprensa. Até a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) enviou nota de repúdio à suposta declaração do candidato à presidência. Bem, quem lê este blog sabe que não existe aqui nenhuma manifestação contra ou a favor de Serra, Dilma, Marina Silva ou qualquer outro candidato á presidência. Mas como o assunto é a imprensa, não me furto a deixar minha opínião.

O fato de a nota de retificação ter saído no mesmo dia em que se comemora a liberdade de imprensa é sintomático, pois neste dia houve em vários cantos do país debates sobre a data. No Rio, o jornalista Carl Bernstein - famoso mundialmente por ter sido, junto com Bob Woodward, um dos repórteres a cobrir e desvendar o escândalo de Watergate, que culminaria com a renúncia do presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, em 1974 -, ao comentar o papel da imprensa atual, não hesitou em fazer sérias críticas sobre o que ele chamou de "preguiçosa apuração dos fatos". Bernstein disse que, além de buscar sempre manter a liberdade de imprensa, os jornalistas devem cuidar ao mesmo tempo de manter a credibilidade da imprensa em todos as plataformas em que as notícias são divulgadas. Em entrevista ao Globo, o jornalista americano alertou que tal confiança vem sendo minada pela frivolidade e uma perigosa apuração dos fatos.




Vale a pena citar outra declaração de Bernstein no seminário do Rio de Janeiro:
- Nos últimos anos, tem dominado a cultura jornalística global algo cada vez menos a ver com a verdade, a realidade ou o contexto. O jornal tem estado fora de contato com a verdade, com frequência desconectado do contexto real, desfigurado pelo culto á celebridade, fofoca, sensacionalismo e controvérsia manufaturada, sobretudo na TV, mas também no jornalismo impresso, estimulada por jornalistas e pelo discurso político.

Culto à celebridade, fofocas...será que o cara não pegou pesado? Bem, na mesma segunda-feira, dia 3 de maio, a manchete principal de um grande portal brasileiro era "Anamara do BBB diz que ficou excitada com as fotos para a Playboy". Subtítulo: "Ex-policial diz que 'pegava' o Dourado". Bem, vou me abster de comentar...

Voltando ao que interessa e ao motivo deste artigo: tivesse havido um pouco mais de seriedade na apuração e a rede RBS não teria publicado a notícia. Tivesse ocorrido a alguém um pouco mais de preocupação com a mensagem recebida e nossa grande imprensa (além da maioria dos sites) não teria retransmitido a "barriga" sem checar a veracidade da informação.

(Entre parêntesis: Bernstein também comentou que entre os jornalistas presos, quase metade deles são blogueiros (!!), "pois eles podem escrever o que quiserem, já que não são censurados". Que orgulho!, É sinal que, à despeito das limitações ao acesso à rede e mesmo com proibições da internet em alguns países, os blogs estão ganhando importãncia e incomodando!).

Ainda sobre os "fumantes ateus". Nesse caso, a pressa em dar uma notícia "impactante" de um candidato à presidência levou a imprensa a errar. Nossos jornalistas não foram atrás da melhor versão possível da verdade, segundo a ótima definição de Bernstein, mas sim à procura pela forma mais rápida de dar um furo irresponsável. Só nos resta torcer que erros assim não se tornem comuns no que vem por aí, pois a disputa presidencial está esquentando. E para que as críticas à imprensa, feitas semana sim semana também por nossos políticos, em sua maioria infundadas, não se tornem reais.

E os fumantes, heim? Será que se sentiram afetados com a polêmica toda? Creio que não. Outro dia mesmo, um fumante gaiato, ao comentar a infeliz declaração, teria levantado as mãos pro céu e dito: "Perdoai-vos, pai: eles não sabem o que publicam!"

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