segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Estação Botafogo - minha escola de cinema

Leio no Globo desta semana que o cinema Estação Botafogo - assim como todo o grupo Estação, formado por 16 cinemas - encontra-se em crise financeira, e corre o risco de ir à falência. Não é a primeira vez que o grupo é levado a uma crise, e torço bastante para que eles encontrem uma saída. Caso isso não aconteça, seria um golpe fatal em toda uma geração de cinéfilos cariocas (dentre os quais me incluo) que aprenderam a curtir cinema de qualidade naqueles cinemas. Tanto que até uma página foi criada no Facebook (veja aqui). Muita gente aproveitou o espaço para inserir ali suas lembranças sobre o cinema. Eu, que frequento o espaço desde os anos 1980, quando havia apenas o "Cineclube" Estação Botafogo, não poderia deixar de comentar minha trajetória como frequentador do local. Até poque foi ali que passei alguns dos momentos mais marcantes de minha bagagem cultural.



A primeira vez em que estive no cinema Estação Botafogo foi para ver o filme "Blade Runner: caçador de andróides", numa noite perdida de 1987. Lembro que estava com dois amigos, e o então "cineclube" começava a receber notas da imprensa sobre sua programação alternativa. Não era um ambiente de cinema "normal". A fauna ali era visivelmente diferente de quem frequentava cinemas de rua (ainda frequentes, mas já em decadência com a corrida aos videocassetes) ou os de shoppings. Antes do filme, chegamos a comentar que alguns dos indivíduos presentes na sala de espera bem podiam ser um dos replicantes do filme de Ridley Scott. Eram apenas apaixonados pela sétima arte.

Sim, porque há aqueles frequentadores cada vez mais ocasionais de cinema - como a maioria, já que hoje em dia, com o encarecimento dos ingressos, ir ao cinema deixou de ser um hábito semanal, como era na minha infância e adolescência -,  e os cinéfilos ou apaixonados não só pelo filme em si, mas por todo o contexto da obra e do ritual cinematográficos. Para essa gente, não basta ver um filme e depois comer uma pizza. Há que se discutir o roteiro, a direção, os atores, a linguagem utilizada, além do prazer compartilhado de conferir um filme nos jornais, arrumar-se, sair de casa, pagar ingresso e aguardar o começo do filme na enorme tela em frente, tela essa que nenhuma tela de TV, por mais ultramodernas que estejam, ainda não conseguiu igualar. Para toda essa gente, o Estação Botafogo era simplesmente o cinema.  

O cinema é um companheiro dos solitários, os românticos e daqueles perdidos de amor. Muitos casais deram seu primeiro beijo dentro de um cinema, e o Estação não foi exceção. Outros, fugiram para o cinema para, na falta de algum companheiro para chorar suas mágoas, acompanhar na tela toda aquela ilusão roteirizada e tentar por uma ou duas horas escapar da tristeza de uma amor não correspondido. Foi o meu caso numa tarde de sábado quando, após ter levado um "não" da garota que eu me apaixonara num cursinho de pré-vestibular, acorri ao Estação para ver "A encruzilhada", um filme sobre um músico talentoso de blues (o então famoso "karatê kid" Ralph Macchio), que vai atrás de uma canção perdida do lendário Robert Johnson. Uma frase dita por um dos personagens marcou aquela ida ao cinema: "Blues é a dor que sentimos quando a mulher que amamos vai embora". Pelo menos eu não era o único a sofrer uma desilusão amorosa naquele dia. Meu colega do outro lado da tela também estava triste.  

Foi no Estação que vi pela primeira vez "Cidadão Kane", num curso ministrado pelo cineasta e jornalista Pedro Camargo, e que abriu minha cabeça. Eu estava fazendo 18 anos naquele dia, e foi realmente especial para mim. Mais tarde vieram os grandes clássicos, como "Jules e Jim", de Trufaut, "Um corpo que cai", do Hitchcock, "Noites de Cabíria", do Fellini, "Lolita", do Kubrick e vários outros, sem contar com os cult-movies, como "Depois de horas" (Scorcese), "Dublê de corpo" (Brian de Palma), "O fundo do coração" de Coppola ou "Coração Selvagem" de David Lynch. Foi no Estação que conheci a maioria destes grandes diretores, com filmes difíceis de encontrar fora dali. Em que outro cinema, por exemplo, eu poderia ter aceso a filmes de Luís Buñuel? Jamais esquecerei do impacto de filmes como "O anjo exterminador" ou "Esse obscuro objeto do desejo" numa semana dedicada ao cineasta espanhol. Aliás, esse era um grande barato do Estação: promover mostras dedicadas a um cineasta ou movimento cinematográfico, homenageando diretores, atores etc.Onde mais eu teria acesso a uma pérola como "O homem do Sputnik" (Carlos Manga) numa mostra dedicada às chanchadas? Ou conferir o clássico "Rio 40 graus" no chão, com a sala completamente lotada  e a presença do diretor Nelson Pereira dos Santos.

Todos estes momentos eu vi num único cinema - o Estação Botafogo - bem antes de tornar o Grupo Estação. E é por todos estes momentos especiais que ajudaram a todos nós, que frequentamos aquela sala, amantes do cinema e pessoas mais informadas, que o Estação não pode acabar. Mais que um grande empreendimento comercial, ele é parte da cultura cinematográfica carioca, que ajudou a centenas de pessoas a descobrir que, para além daquele cinema hegemônico americano, havia um enorme contingente de filmes, diretores, atores e atrizes a serem descobertos. Vou encerrar com um clichê, mas não consigo encontrar forma melhor: esse filme não pode acabar de forma triste.



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