Essa história aconteceu em meados de 1994, quando eu ainda era estudante de jornalismo. Foi inspirada na série de colunas do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, no jornal O Globo, em que ele conta histórias, causos em sua maioria divertidos sobre pessoas famosas que ele conheceu. O presente post é também uma forma de saudá-lo pela volta ao colunismo impresso, depois de estar desde maio de 2013 afastado do jornal. Na época em que eu pesquisava colunas de notas da mídia impressa para minha tese de doutorado, li muito sua coluna "Gente Boa", uma coluna social modernizada. Basta dizer que houve uma época - entre os anos 40 e 50 do século passado - em que o colunista Jacinto de Thormes (pseudônimo de Maneco Muller) chamava seus colunáveis de "gente bem", uma jocosa denominação para "bem nascidos", ou aqueles pertencentes à classe mais alta da elite brasileira. Pessoas "comuns" estavam fora deste mundo e das colunas sociais. Joaquim trocou a terminação para "Gente Boa", com a clara proposta de abraçar não só os ricos e famosos, mas também todos os anônimos que pudessem um dia virar notícia...toda aquela gente boa antes excluída do colunismo.
Agora em 2014, no começo do ano, ele voltou ao Globo, não mais como titular da "Gente Boa", hoje entregue aos cuidados de Cléo Guimarães, mas com uma coluna na última página do Segundo Caderno de volta às segundas-feiras. E eu não poderia de aproveitar este espaço para saudá-lo. Joaquim é um artesão da linguagem e um mestre na arte escrever crônicas. Basta ver este exemplo, que bem poderia estar na série de postagens "lides imperdíveis":
Sexo. São quatro letras que pingam, e espero que elas deixem molhadinha a audiência, chamem a atenção e, como não se fala de outra coisa, grudem na curiosidade de quem passar por aqui. O cacófato "por aqui" por exemplo, já cheira a sexo e, por sua sonoridade lamentável desde já me desculpo. De resto, é uma palavra que doravante será tratada sem culpa, ao estalo do chicote semântico. Eia! Avante! Tudo pelo aumento do pageview e todos os tesões da visibilidade digital. Não se diz mais "me come". A frase mais sussurada é "me compartilha".
(O Globo, janeiro de 2014)
Pois voltemos agora a uma pequena aula de jornalismo dentro da série de histórias de Joaquim envolvendo famosos. Escolhi este exemplo porque há dois grandes jornalistas envolvidos nesta história; um, literalmente, o outro, como homenagem. O primeiro, o craque Elio Gaspari, que dará uma orientação genial ao jovem repórter durante a época da ditadura. O segundo, o americano Gay Talese, que escreveu uma peculiar definição de jornalismo, bem antes que os computadores e seus buscadores virtuais relegassem grande parte dos repórteres apenas aos ambientes assépticos das redações:
No dia em que conheci o coronel Péricles Augusto Machado Neves, todo poderoso presidente do BNH na ditadura Garrastazu Médici, ele na verdade não estava em casa. Péricles presidia a caderneta de poupança, e tinha dado entrevistas dizendo que o brasileiro não sabia poupar, jogava muita coisa boa fora - e o editor Elio Gaspari me encarregou de pegar, em pleno regime militar, a lata de lixo do coronel. Eu me fiz de funcionário da Comlurb. Bati na porta dos fundos do apartamento e o filho do homem, sem estranhar, me mandou carregar o tesouro, a lata de lixo repleta de porções de arroz ainda boas, papelão que poderia ser reciclado, garrafas que podiam ser vendidas etc. A relação de desperdícios deu página inteira na revista em que eu trabalhava - e eu só estou escrevendo isso para lembrar, em plena civilização das assessorias e das entrevistas por e-mail, do tempo em que repórteres gastavam sola de sapato e contavam a História do Brasil fuçando a lata de lixo dos poderosos.
(O Globo, maio de 2013)
Em tempo: a frase memorável de Gay Talese é: "Jornalismo é a arte de sujar os sapatos". Ou, indo mais longe, sem esquecer de fuçar a lata de lixo dos poderosos.
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