Em todo o mundo, é uma tradição nos meios de comunicação recapitular os momentos mais importantes daqueles 365 dias que se foram. Daí a avalanche de retrospectivas, seletivas, momentos bons e ruins, grandes perdas, grandes talentos que surgiram, os campeões do esporte, os melhores nas artes etc. Hoje em dia, com a velocidade dos acontecimentos e a nova gama de informações, multiplicada pelo advento da internet, entramos num paradoxo: há muito mais informação disponível e muito mais espaço para levar ao público sua arte; porém, é cada dia mais difícil o surgimento de um talento que arrebate as multidões e promova uma revolução musical e comportamental entre os jovens. A morte de Michael Jackson, que com certeza será lembrada em todos os programas retrospectivos mundo afora, marcou também o fim de uma era: a do artista como um revolucionário que muda a cultura de sua época e vende milhões de discos. Hoje, vivemos a cultura do download musical e por enquanto não há certezas sobre o futuro do mercado de discos.
Este cenário musical de 2009 marcou também o relançamento - pela primeira vez remasterizados dignamente - de todos os CDs (originalmente lançados como LPs) dos Beatles, a banda mais revolucionária do rock. Comemorou-se também os 40 anos do lançamento, em 1969, da obra-prima "Abbey Road", o canto de cisne dos quatro de Liverpool. Num tempo em que qualquer um pode gravar um disco dentro de seu quarto ou garagem e depois lançar na internet, é sempre bom lembrar de artistas que com seu talento proporcionaram arte duradoura e, por que não, eterna.
As comemorações pelos 40 anos de Abbey Road foram muitas. De minha parte, vou transcrever um trecho da entrevista concedida aos repórteres americanos à época da primeira viagem dos Beatles aos Estados Unidos, em 1964, quando o grupo definitivamente conquistaria o mundo. São momentos que mostram todo o humor, ironia e non-sense de artistas em processo de amadurecimento.
Deslumbrados com o sucesso, sim, mas conscientes do poder da música no mundo do entretenimento, os quatro integrantes da banda respondem e cutucam jornalistas que insistem em fazer perguntas idiotas ("vão cortar o cabelo?"). Era já um prenúncio da cultura de celebridades que estava por vir - mais preocupada com a imagem e fofocas do que com arte. Segue o trecho, retirado do livro de Roberto Muggiati "A Revolução dos Beatles".
"A conquista do planeta começou mal, numa apresentação de aquecimento no Cinema Cyrano, de Versalhes. No dia seguinte, tinha início a temporada parisiense no Olympia. Os rapazes dividiam o cartaz com Triny Lopez e Sylvie Vartan, sem ter ficado claro qual era a atração principal, embora os Beatles tivessem fechado os dezoito shows(...). No meio de tudo isso, na volta ao hotel pela madrugada, um telegrama trazia a boa nova: nos Estados Unidos, o compacto "I wanna hold your hand" pulava do quadragésimo terceiro lugar para o primeiro nas paradas. Em três dias, vendeu 250 mil cópias; a 10 de janeiro tinha chegado a um milhão e no dia 13 vendia 10 mil cópias por hora, só na cidade de Nova York. era tudo que Brian [o empresário] e os rapazes precisavam para tomar de assalto a América.
No dia 6 de fevereiro, eles embarcavam no Boeing 707 da Pan American PA 101, o avião cheio de jornalistas e homens de negócios que assediavam Brian Epstein com propostas de marketing, merchandising e coisas mais para faturar em cima do sucesso dos Beatles. Na sexta-feira, 7 de fevereiro, os Beatles pousavam no Aeroporto Internacional de Nova York, recém-batizado de John F. Kennedy. A expectatica da chegada (THE BEATLES ARE COMING! era o grito de guerra) ultrapassava tudo o que Brian e os Beatles poderiam imaginar.
Uma agitada multidão de jovens aguradava no aeroporto. Ao contrário da bem-comportada coletiva antes do embarque em Heathrow, em Londres, um turba agressiva de repórteres e fotógrafos assediava os Beatles na sala de imprensa do aeroporto. Foi John que colocou ordem nos trabalhos com um sonoro Shaaaaaaarup!
- Que acharam da recepção? - perguntou um repórter.
- Então isto é a América - falou Ringo, encarando a plateia. - Parece todo mundo doido...
- Vão cortar o cabelo? (risos gerais)
- Acabei de cortar o meu ontem - disse John.
- Vocês fazem parte de uma rebelião social contra a geração mais velha?
- É uma mentira deslavada.
- E a campanha em Detroit para acabar com os Beatles?
- Estamos em campanha pra acabar com Detroit - disse Paul.
- O que é que vocês fazem quando estão ilhados nos quartos de hotel entre os shows?
- Fazemos patinação no gelo - respondeu George.
- Pretendem levar algo de volta com vocês?
- O Rockfeller Center.
- Que acham de Beethoven?
- Adoro ele - disse Ringo - especialmente seus poemas.
E por aí foi."
Um feliz 2010 para todos nós.
"O que acha que estará fazendo daqui a 20 anos?"
"Talvez tendo que responder a perguntas iguais a essa".
(Entrevista com Keith Richards, no filme "Shine a Light")
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