quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Afasta de mim esse celular! Como assistir ao show de Chico Buarque em meio a um mar de gadgets não-convidados

Sábado à noite. Pouco antes de começar o show de Chico Buarque, em temporada no Vivo Rio, as luzes se apagam e uma voz gravada anuncia breves informações sobre os patrocinadores, as próximas atrações etc. Pede também que os aparelhos celulares sejam desligados e deseja um bom show a todos. O segundo desejo foi atendido: Chico está num grande momento e o show é ótimo. Já o recado para desligar celulares, isso já é outra história...

A primeira vez em que notei que os telefones celulares tinham se tornado parte do ambiente em espetáculos foi em meados de 2003 ou 2004, em um show do Los Hermanos, naquela casa da Barra da Tijuca antes conhecida como Metropolitan. O show estava lotado e eu chegara tarde, ficando num lugar bem longe do palco. Em determinada canção, centenas de luzes começaram a piscar da plateia. Mostrei à minha companheira o fenômeno, mas ela se recusou a acreditar. "São isqueiros", disse. Não eram. Prestei mais atenção e então constatei: até os anos 1990, isqueiros se acendiam em determinados momentos de shows, em grande parte quando o artista ou a banda tocavam músicas românticas. Agora, no século XXI, havia poucos fumantes na plateia, e a tecnologia mudara o quadro. Vários jovens munidos de celulares que também tiravam fotos (última moda então) levantavam os aparelhos para tentar fotografar os artistas. Vistos de longe, a impressão que nos dava era a de que de fato havia um mar de isqueiros à frente.

Encarei aquilo como um sinal dos tempos. Não chegou a perturbar a fruição do show. Ontem, isqueiros; hoje, celulares. Ok.

No entanto, semana passada, no show do Chico Buarque, o que pra mim era apenas uma curiosidade virou um tormento. Se por uma lado os celulares transformaram-se em mídias poderosas, verdadeiros computadores móveis para facilitar nossa vida, por outro fez surgir um tipo singular de indivíduo incapaz de concentrar-se num bom show de música se não estiver "interagindo" com seus seguidores em alguma rede social qualquer, postando fotos no facebook ou digitando no twitter para que todos saibam onde ele está.

Prestem muita atenção neste verbo: interagir. Antigamente a única interação que havia num show de música era entre o artista e a plateia. Hoje, há cada vez mais indivíduos que não conseguem assistir a um show, ver um jogo de futebol, ou mesmo jantar num restaurante sem a ânsia patética de "registrar o momento" e "compartilhar" com seus seguidores nas redes sociais. Verdadeiros exibicionistas high-tech, para estes indivíduos o termo privacidade é algo que também ficou preso em algum momento do século passado.

No show do Chico, dei o azar de sentar bem próximo a um destes neuróticos digitais. O sujeito ficou, pelo menos até o meio do show, tirando fotos do palco com seu smartphone último tipo. Não satisfeito, o camarada ainda escrevia alguma bobagem sobre o que registrara e ficava alguns momentos para decidir qual rede social e para quem mandar o que captara. Bem à minha frente. Que situação...

Sim, hoje a mera foto não é suficiente. Não sou um radical e confesso que eu mesmo já tirei fotos com o aparelho celular em um ou outro show. Mas nada a ponto do que dá pra se ver hoje, quando a necessidade de registrar o momento é tão (ou mais) importante do que assistir ao show. Tem que ter o "recadinho" do neurótico para seus seguidores, para que eles sintam como ele é antenado e consegue compartilhar (de novo!, argh) seus momentos com todos. Tenho quase certeza de que o sujeito à minha frente não deve ter a mínima ideia de quais músicas foram tocadas enquanto ele se comprazia em compartilhar (desculpem, é a última vez que escrevo esta palavra) seus momentos.

Sobre o show. Apesar de tudo, do mar de gadgets à frente, foi um bom show, apesar do som não tão bom como deveria, já que várias canções são intimistas e requerem silêncio e ótima acústica. Há várias músicas, como no disco, dedicadas à namorada, a tqmbém cantora Thaís Gullin, e como é bom ver Chico de bem com a vida e com sua ótima banda ao vivo! Entre os ótimos momentos, destaco o novo arranjo para "Geni e o Zepelin", da Ópera do Malandro, o bloco "feminino", de canções como "Ana de Amsterdan", "Terezinha" e "Sob medida" (que fez muitas mulheres na plateia perderem a linha...), a parceria no palco com o baterista e crooner Wilson das Neves em "Sou eu" e "Tereza da praia". O bloco nordestino, com "Baioque" e "A violeira" também foi ótimo, além do final, com a já clássica "Sinhá" (de Chico com João Bosco, uma das melhores canções de 2011) e a delícia de poder cantar junto, no bis, a poesia de "Futuros amantes" e "Na carreira".

Claro que não faltou o momento surpresa, que é quando Chico resgata "Cálice", sua clássica canção com Gilberto Gil, com a nova versão feita pelo artista revelação de 2011, Criolo, a quem Chico saúda com um "evoé, jovem artista!". Trata-se de uma belo momento do velho artista consagrado saudando as novas gerações.


Chico homenageia Criolo em seu show. Este momento não foi captado por celular

Enfim, um belo momento de um show, como todos de Chico, emocionante, apesar da invasão dos smartphones exibicionistas. E confesso que, na saída, não pude deixar de, assim como Criolo, fazer minha própria nova versão para "Cálice": Pai, afasta de mim esse celular!

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