Gay Talese já dizia que o jornalismo é a "arte de sujar os sapatos". Ou seja, sair das redações e bater perna nas ruas ao encontro de alguma boa história, ou de algum personagem interessante para descrever. Uma reportagem poderá render bem mais quando o jornalista é testemunha ocular: quando ele pode descrever o local de forma atraente para a narrativa e para o leitor. À maneira de um autor de romances, um bom jornalista sabe descrever o cenário, as luzes, objetos e o local do acontecimento de modo a enriquecer seu texto com pequenos detallhes os quais, se bem colocados, fazem toda diferença. Da mesma forma é a entrevista. Pergunte a algum repórter experimentado e ele dirá que o contato pessoal é a melhor forma de realizar um perfil do seu entrevistado. Bem melhor do que a entrevista por telefone, marcado pela impessoalidade, o contato pessoal dá a chance ao jornalista de não só ganhar a confiança do entrevistado, como também usar a observação e a memória para descrever o cenário a sua volta.
Voltando à série "lides imperdíveis", com grandes começos de reportagens, darei como exemplo a reportagem "Retrato de família", realizada pelo jornalista Chico Otávio para a Revista do Globo, matéria de capa do dia 15 de janeiro de 2012. O jornalista começa seu texto com uma descrição detalhada de objetos da casa da viúva do ex-lider comunista Luiz Carlos Prestes. Ao longo da leitura, o leitor vai assimilando traços peculiares do cotidiano e da personalidade daquela mulher que fora casada com um dos mais conhecidos políticos brasileiros.
O "gancho" da matéria, ou seja, o motivo da reportagem, havia sido a repercussão de cartas, fotos e outros documentos familiares de Prestes que mostravam não o líder comunista, com aquela imagem que ainda é forte para muita gente, a do homem com tempo apenas para luta políticas. Em sua maioria, são fotos simples e banais, como aquela que acabou sendo capa da Revista de História, com Prestes na praia, de sunga e tomando sol, e que acabou atiçando a ira da filha mais famosa do líder comunista, Anita Leocádia, filha de Prests com Olga Benário, ardorosa defensora da imagem do pai e que, segundo a matéria, nem fala com a "imprensa burguesa".
Pois foi esta mesma imprensa burguesa que, num perfil excelente, conseguiu levar ao leitor estes conflitos familiares, descobrindo uma personagem que nunca frequentou manchetes, mas rica em sua humanidade. Uma leitura que vale a pena e, por isso mesmo, não poderia faltar nesta série.
Na sala repleta de fotos do Velho e de foices e martelos estampados em objetos da antiga União Soviética, que fazem do ambiente um santuário comunista, Maria do Carmo Ribeiro Prestes expõe um ateísmo convicto:
- Religião é apenas uma hipótese. Só hipótese.
Um olhar mais atento, porém, descobre entre matrioskas, cálices de vodca, pinturas russas e outras recordações, guardadas no apartamento da Gávea, uma pequena imagem de Nossa Senhora. Intrigado, o visitante cobra explicações.
- Ah, ganhei e deixei aí - sorri a anfitriã.
Mãe de sete dos oito filhos de Luiz Carlos Prestes, com quem foi casada por 38 anos, Maria nunca deixou de zelar pelas memórias e pelas crenças do marido. Mas a vida difícil, marcada por perseguições, clandestinidade e exílio, foi incapaz de endurecer o seu discurso ou turvar o seu humor. A matriarca, aos 81 anos, preserva a mesma generosidade com que, na gélida Moscou dos anos 1970, abria as portas de casa aos exilados atraídos pelo aroma brasileiríssimo de uma improvável feijoada.
Na defesa do legado de Prestes, Maria criou um estilo. Não é solene, não prega a ortodoxia. Partiu dela a revelação das recordações mais íntimas do Cavaleiro da Esperança que vieram a público este mês, com a doação de cartas, documentos e fotografias familiares de Prestes ao Arquivo Nacional, na contramão da ideia de que o legendário líder comunista só tinha tempo para as lutas contra as oligarquias e o capitalismo.
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