sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Somos todos Charlie - humor x fanatismo

O atentado terrorista contra a redação do jornal francês Charlie Hebdo me fez lembrar de uma aula que dei na faculdade de comunicação há pouco mais de dois anos. A disciplina era Cultura das Mídias e o tema da aula, a cultura do politicamente correto. Em determinado momento, a fim de explicar a influência do politicamente correto no humor, recorri a um vídeo do Felipe Neto e seu "Não faz sentido". Na época Felipe já tinha um bom séquito de fãs na web, com seus ácidos comentários no Youtube sobre vários temas. Assim, boa parte da turma se empolgou com o que veria a seguir.

O vídeo começa e Felipe logo avisa que fez uma seleção piadas de humor "refinado", com "compromisso social", que "não ofendem ninguém". Pausa. Entra uma música clássica de fundo e Felipe fica um minuto inteiro sem falar absolutamente nada. Ou tentando falar, mas sem encontrar algo a dizer. Na sala de aula, observo alunos perplexos que esperam a piada, que não vem em momento algum. Ao final do vídeo, Felipe sai de cena e entra a legenda: "Nenhuma minoria foi ofendida nestes 60 segundos",





Curiosamente, acompanhando a repercussão no Brasil sobre a tragédia francesa, encontrei um artigo muito bom de Allan Sieber (escrito especialmente para o blog do Andre Barcinski), sobre um debate que tomou a França há alguns anos, sobre os limites do humor. Na época, o Charlie Hebdo chegou às bancas de todo o país com a manchete "Um jornal responsável",  Segundo Sieber, "dentro só tinha as legendas dos cartuns, o resto era TUDO branco. Nunca ninguém teve a manha de fazer um jornal mais chapa branca que esse".




Poderíamos dizer que os cartunistas do Charlie Hebdo sabiam que não existe essa história de "humor responsável". A corrente ideológica do "politicamente correto" surgiu nos EUA durante os anos 1980 e se alastrou como uma praga em boa parte do mundo ocidental. De repente nos vimos obrigados a rever nossos conceitos sobre toda forma de minorias que por séculos foram difamadas, exploradas, humilhadas, sacaneadas, ironizadas, tornando-se, em grande parte, alvo de piadas, do humor que é parte da sociedade. Claro que a ideia inicial era boa ( quantas vezes não ouvimos a expressão "não judia dele não", sem atentar que na verdade estávamos denegrindo os judeus?), mas aos poucos a corrente se transformou numa grande patrulha transformada em correção política, e um grupo que foi muito agredido foi justamente o dos humoristas. De repente não era bom fazer piada nem com anões, que se transformaram dentro do linguajar politicamente correto em "verticalmente desfavorecidos"). Lendo os jornais a respeito das mortes dos cartunistas franceses, li algumas opiniões de leitores e até de intelectuais convidados a se expressarem dizendo que deveria haver um limite no humor. Alguns chegaram mesmo a dizer os cartunistas teriam exagerado, que aqui no Brasil ninguém gostaria de ver "os dogmas do catolicismo sendo ridicularizados"

(Bem, quanto a este último comentário, devo dizer que o autor está bastante desinformado. Sugiro a ele que entre no canal do "Porta do fundos" do youtube para ver alguns vídeos hilários sobre Jesus e os "dogmas do catolicismo". A despeito de alguns comentários indignados no próprio Youtube, até agora nenhum dos vídeos do grupo a satirizar o cristianismo, Deus ou Jesus foi proibido).

Quando o politicamente correto se mistura com o radicalismo, temos o fundamentalismo ou o fanatismo religioso, que acredita não haver espaço para a tolerância. Para um fanático, como estes que mataram os cartunistas franceses, não se pensa na alternativa mais civilizada que seria simplesmente ignorar o jornal. É preciso também assassinar aqueles que "profanaram" sua religião.

O grande escritor israelense Amós Oz escreveu em 2004 um pequeno grande livro chamado justamente "Contra o fanatismo".Eis um pequeno trecho em que fala sobre o Oriente Médio, mas que poderia muito bem definir o fanatismo no mundo inteiro::

"A crise atual no mundo - no Oriente Médio, em Israel e na Plestina - não diz respeito, de jeito algum, à mentalidade dos árabes, como querem alguns racistas.Diz respeito à luta antiga entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerância. O 11 de setembro não tem a ver nem mesmo com a questão de se a América é boa ou má, se o capitalismo é ameaçador ou transparente, se a globalização deveria cessar ou não. Diz respeito, isto sim, à reivindicação típica dos fanáticos: se julgo algo mau, elimino-o, junto com seus vizinhos. O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o  Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo,  O fanatismo é, infelizmente, um componente onipresente da natureza humana, um gene do mal, se quiserem chamá-lo desta forma. Pessoas que explodem clínicas de aborto nos Estados Unidos, que queimam mesquitas e sinagogas aqui ou na Alemanha, diferem de Bin Laden apenas em escala, mas não na natureza de seus crimes,"

O pior que poderia acontecer com relação ao assassinato dos jornalistas franceses seria considerar aquilo como algo isolado. De fato, cheguei a ler uma postagem do Facebook onde um amigo escreveu "viva o Brasil, que está longe de ter massacres iguais ao que aconteceu na França".  Bem, devemos tomar cuidado com afirmações como essa. O Brasil ainda é um dos países que mais matam jornalistas. Ainda é um local em que pessoas pobres são diariamente assassinadas nas grandes favelas. Ainda é um país onde um universitário é assassinado na entrada da faculdade por motivos banais. Em que evangélicos fundamentalistas não escondem nas redes sociais sua satisfação e ainda ameaçam aqueles que fazem humor com passagens da Bíblia. São todos casos de intolerância e desprezo à vida humana, mas que não tiveram a mesma repercussão que as mortes francesas.  

A solidariedade mundial mostrada nos últimos dias mostra que devemos considerar o crime ao jornal francês como um crime contra todos nós. Contra a civilização, a liberdade de expressão e a tolerância humana. Talvez Voltaire não imaginasse o quanto ele fez pela liberdade de expressão ao dizer para um crítico: "não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de fazê-lo".

Um dos assassinos dos cartunistas franceses chegou a dizer que não se importava em virar um mártir da causa contra o Islã. Enganou-se. A solidariedade mundial que se seguiu à tragédia francesa mostra que na verdade eles conseguiram criar milhares de adeptos á causa da liberdade de expressão. Na semana que vem, um número especial de Charlie Hebdo - que se encontrava em crise financeira - sairá com a tiragem inédita de 1 milhão de exemplares, com boa parte da renda destinada ás famílias das vítimas. Ou seja, Charlie vive.

Que o humor não morra jamais. Je suis Charlie. Somos todos Charlie.






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