Há uma cena bem interessante ainda no começo do filme "A vida secreta de Walter Mitty". Estamos numa grande sala de uma grande revista - a Life - em Nova York. Todos os funcionários estão ali - dentre eles o protagonista, vivido por Ben Stiller -, e todos aguardam uma uma notícia que se revelará ruim para a maioria. Adentra a sala o novo e arrogante "manager" da revista, Ted Hendricks (Adam Scott) e sem demora avisa a todos o motivo da reunião: a edição impressa da lendária revista não circulará mais. Apenas a edição online sobreviverá. Em vista disso haverá corte de custos, começando com os funcionários.
O novo patrão, do alto de sua soberba, diz a todos que o último número deverá ser especial, e para tanto a foto da capa deverá ser aquela escolhida pelo mais famoso fotógrafo da revista, Sean O'Connel (vivido por Sean Penn, um personagem que é uma homenagem do filme a grandes fotógrafos, como Robert Capa). Em um telegrama enviado à revista, O'Connel explica a razão da foto específica: para ele, ela contém a "quintessência da vida". Hendricks, após ler a palavra, parece confuso, e um dos seus assessores o socorre com a definição de quintessência: seria algo que por si só revelasse o essencial, o principal, o último apuramento de determinado artista.
Stiller sente um arrepio. Ele está há 16 anos na revista e é o chefe dos reveladores. Será ele quem terá a importante tarefa de entregar a foto revelada para a publicação especial. Porém, há um problema: a foto escolhida pelo fotógrafo sumiu. Como a edição final está prevista para dali a duas semanas, Stiller parte em uma viagem pelo mundo em busca do fotógrafo para saber o paradeiro da tão especial fotografia.
(Cabe aqui um parêntesis sobre a Life. A revista, fundada em 1936, fez grande sucesso nas décadas de 1940 e 1950, quando era semanal e um grande veículo de comunicação de massas. Em 1978, passou a ser mensal e em 2000, após sucessivas crises financeiras, teve sua última edição impressa. Hoje a Life só existe online e vez por outra realiza edições temáticas).
Num tempo de banalização de imagens trazido pela overdose de câmeras e smartphones digitais, onde tudo é motivo para ser fotografado, pode parecer "coisa de cinema" alguém, como Walter Mitty, correr o mundo em busca de uma deteminada foto, aquela que conteria, como no filme, a quintessência de um verdadeiro artista. O lema da Life, escrito pelo fundador da revista, Henry Luce, em 1936, era: "Ver coisas a milhares de distância, coisas escondidas atrás de muros e dentro de quartos, coisas perigosas por vir". É esta mensagem que o fotógrafo escreve no telegrama à Mitty, a quem ele considerava um verdadeiro parceiro profissional, por revelar sempre da melhor maneira seus cliques ao redor do mundo. Houve um tempo, ainda na primeira metade do século XX, antes da televisão e internet, na qual era apenas pelo cinema ou por revistas ilustradas como a Life que as pessoas ficavam conhecendo "coisas a milhares de distância". Na Europa, não se pode esquecer a Paris Match. E no Brasil, tivemos o exemplo de O Cruzeiro, fundada por Assis Chateaubriand em 1928, publicação que revolucionou o fotojornalismo no Brasil a partir dos anos 1940, enquanto surgia por aqui pela primeira vez uma incipiente indústria cultural.
No livro "As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre O Cruzeiro, 1940/1960", publicado pelo Instituto Moreira Sales, explica-se a razão do sucesso das revistas ilustradas: Na Europa e nos Estados Unidos, o surgimento destas revistas esteve intimamente relacionado aos aperfeiçoamentos tecnológicos, que permitiram a inclusão da fotografia nas páginas dos periódicos, à industrialização da imprensa, à comercialização da notícia e à expansão da publicidade. No Brasil, não seria diferente, mesmo com toda a defasagem nossa em relação às indústrias culturais do exterior. Se no século XIX, quando surge a fotografia, tivemos em grande parte o trabalho de ilustradores que desenhavam por cima de fotografias reais (como no caso da Guerra do Paraguai), devido ao alto custo de imprimir fotos em jornais e revistas, com o avanço da tecnologia nas décadas posteriores tivemos a revista ilustrada como a grande vitrine do fotojornalismo moderno.
Quem viu o filme de Ben Stiller entende porque o fotógrafo vivido por Sean Penn considerava sua arte um trabalho de equipe: era assim em toda a revista Life: "As instruções da Time-Life deixam claro que não bastava ter boas fotos para ter uma boa fotorreportagem, e revela os bastidores de um trabalho de equipe que exigia uma grande articulação entre os participantes (...).Com o surgimento da Life, a fotorreportagem se transformava numa fórmula passível de ser aplicada aos mais variados contextos", ressalta o livro do IMS.
Fica explicado porque os grandes fotógrafos procuram a "quintessência da vida" em imagens reveladoras. São momentos decisivos, como diria Cartier-Bresson, são cliques que de tão impactante nos mostram toda uma era da história, como a menina nua correndo das bombas de napalm no Vietnã, as bombas da Segunda Guerra Mundial, a chegada dos aliados à Normandia pelas lentes de Robert Capa, os índios do Amazonas olhando fascinados para os "pássaros de fogo" (aviões) pelas lentes de Jean Manzon em O Cruzeiro, o incrível périplo de Sebastião Salgado para descobrir e revelar povos ainda sem contato com a civilização em pleno século XXI e muito mais.
A Life foi uma das grandes criadoras do fotojornalismo em revista. Algo que o filme "A vida secreta de Walter Mitty" demonstra de forma brilhante. Não perca. Pra encerrar, deixo o link do site da Life em que eles mostram o trabalho das capas falsas feitas especialmente para o filme. Sim, aquelas capas mostradas nos corredores por onde Stiller e outros personagens circulam são criações da equipe cinematográfica em cima do acervo da própria Life. Divirtam-se.
http://life.time.com/culture/walter-mitty-life-magazine-covers-that-never-were/#1
2 comentários:
Meus parabéns, que postagem e colocação adequada de um assunto tão complexo é importante.
gostaria de saber qual foi a última capa da life impressa em maio de 2000
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