quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

"Traição", de Harold Pinter: as pequenas traições do cotidiano

Desde o ano passado uma peça teatral tem chamado a atenção no belo Centro Cultural Solar de Botafogo. Não é uma comédia rasgada como aquelas que contam com a preferência dos que vão ao teatro aqui no Rio. Tampouco se trata de um musical "da moda", com canções emepebísticas que falem sobre o tema. "Traição" ("Betrayal"), escrita pelo dramaturgo inglês Harold Pinter, em 1978, ampara-se exclusivamente no texto e nas atuações do elenco. São eles: Leonardo Franco, Isabela Parkinson e Isio Ghelman. A direção é de Ary Coslov.

Harold Pinter, ganhador do prêmio nobel de literatura em 2005, morreu no final do ano passado. Uma pena, pois o teatro perdeu um dos maiores estilistas da arte de narrar uma história, conhecido pela sua conscisão e pelas pausas, que muitas vezes podiam dizer muito. No texto de apresentação da peça, escrito por Sérgio Britto, o autor refuta a ideia de alguns críticos, que consideravam suas peças próximas ao "teatro do absurdo" de autores como Samuel Beckett. Pinter considerava-se um realista, e gostava de contar uma história como exemplo de como vinha sua inspiração:

"Estou num ônibus, duas mulheres conversam no banco da frente ao meu:
'Você dissse tudo?'
'Disse'
'E ela, como mãe dele, ouviu até o fim?'
'Ouviu.' E nisso ela, a interrogada, toca a campanhia e as duas descem. Pois é", conclui Pinter, "Essa situação é teatro puro, só escrevo o que pude ouvir, não invento o resto".

Realmente, algumas situações do cotidiano, se você for um bom observador, podem render cenas absolutamente teatrais. O dia-a-dia dos políticos de Brasília não seria uma espécie de teatro do absurdo? Aquilo que é entreouvido na mesa de bar próxima a sua pode render uma situação insólita de tal forma que por vezes esquecemos de nosso vazio cotidiano para embarcar numa fantasia que não é nossa. E Nelson Rodrigues foi um mestre em transformar as histórias que ele ouvia sobre o subúrbio carioca em tragédias do mais puro teatro.

A história de "Traição" é contada de trás pra frente. Você já deve ter visto isso antes, de forma bem engenhosa, no filme "Amnésia", de Christopher Nolan. A peça trata de um triângulo amoroso composto de dois homens e uma mulher. Robert e Emma são casados. Jerry é o melhor amigo de Robert e também amante de Emma. Os dois últimos terão uma relação extra-conjugal que se arrastará por sete anos. Após o rompimento, encontram-se numa mesa de bar e falam sobre o passado...e é nesse ponto que começa a peça.

À medida que o passado é mostrado, vamos conhecendo as contínuas traições dos personagens. Não só os amantes, mas todos ali traem (e não apenas no ponto mais óbvio, o sexual). Há momentos em que a traição está implícita meramente em uma fala do diálogo, numa pausa ou troca de olhares, numa evocação do passado, numa promessa não cumprida. Como diz Coslov, todos ali cometem algum tipo de traição um com o outro, sem contar os personagens que não estão em cena mas que são citados durante toda a peça (e que também foram traídos de alguma forma).

As cenas e os diálogos são construídos de forma tão concisa que, aos poucos, vamos percebendo que, de traidor, o "melhor amigo" Jerry torna-se o maior traído entre todos.

Isso nos faz penar nas pequenas traições que cometemos em nossas vidas - uma sutil mentira aqui, um comentário ou fofoca sobre um parente indesejável, um passo em falso na carreira etc. Muitas vezes um desejo irresistível pela mulher de um amigo pode abalar uma grande amizade, como Pinter mostra em sua peça.

Como disse, não é uma grande produção em termos econômicos. Os cenários são despojados, criados por Marcos Flacksman, e as músicas da trilha são em sua maioria canções melancólicas de amor e paixão compostas por Eric Clapton em sua carreira solo nos anos 1970. Os atores estão perfeitos, com destaque para o "marido traído", vivido por Leonardo Franco.

"Traição" fica em cartaz no Solar deBotafogo até o dia 15 de fevereiro. Se você gosta de um bom texto, inteligente, irônico e contundente, vale a pena conferir.