sexta-feira, 4 de abril de 2014

Quando o jornalista se acha dono da verdade

Um clichê que infelizmente acompanha o perfil do jornalista é aquele que se refere ao profissional de imprensa como um tipo arrogante. Ou melhor. um sujeito que sabe de sua responsabilidade em divulgar notícias para a sociedade e que, não raro, começa a se achar mais importante do que de fato é. Há algum problema sério para o jornalismo quando um veículo de comunicação toma suas hipóteses como verdades absolutas. Darei um exemplo curioso, que aconteceu há um bom tempo, quando eu era um recém-formado jornalista.

Eu trabalhava na assessoria de imprensa da Fiocruz, no Rio de Janeiro. Havia ganhado uma bolsa de um ano para atuar como assessor de imprensa do Instituto Fernandes Figueira (IFF), em Botafogo, que até então não tinha um setor interno de comunicação social. Meu trabalho era fazer a ponte entre o Instituto, seus médicos e pesquisadores, e a imprensa, além de colaborar com o setor de comunicação de Manguinhos. Toda semana eu marcava entrevistas e recebia repórteres da grande imprensa interessados em informações para seus jornais. O Instituto até hoje é referência na área da saúde da mulher e da criança. 

O ano era 1995, e o IFF, observando um problema comum entre as inúmeras jovens grávidas que diariamente apareciam no Instituto, inaugurara o departamento de gravidez adolescente. A ideia era dar apoio total - não só o pré-natal, mas também com psicólogos, de forma a ajudar àquela futura mãe tão jovem a aguardar a chegada de seu filho de uma forma mais preparada. 

Eis que um diz eu recebo uma ligação de uma repórter da Globo, interessada em realizar uma reportagem sobre o departamento. Fiz o meu papel: conversei com a doutora responsável pelo setor, marquei a data e hora da reportagem e fiquei aguardando a jornalista. Ela conversaria com os médicos responsáveis pelo departamento e também com algumas meninas.

No dia marcado, ao chegar, conversamos um pouco, antes de levá-la ao setor. A repórter vinha com várias convicções antecipadas sobre as jovens grávidas. Para ela, estariam todas deprimidas com o fato de se verem grávidas tão jovens, "arrasadas" pelo possível futuro promissor interrompido de forma tão rápida.     
Mas não foi isso que ela viu. Muitas jovens, se não estavam satisfeitas com a situação, tampouco se mostravam deprimidas com o fato de estarem grávidas. Algumas sorriam e se diziam ansiosas para aguardar os bebês que nasceriam dali a alguns meses. O clichê do "futuro interrompido" não havia ali. 

Mas a repórter não se deu por vencida. Após conversar com várias meninas, finalmente encontrou uma que se mostrava um pouco mais distante que as outras. Bingo! Finalmente sua hipótese estava confirmada. Ela realizou a reportagem, editou e apresentou no seu telejornal do jeito que queria: aquelas meninas "tristes" estavam sendo ajudadas por uma equipe inovadora a "superar o trauma" de uma gravidez adolescente. Tenho certeza de que muitas daquelas meninas que por acaso tenham visto a reportagem na TV se perguntaram: trauma, mas que trauma? 
    
Voltemos a 2014. Fico sabendo, num passeio pelas redes sociais, de uma notícia veiculada na edição impressa  do jornal Extra, na qual o jornalista também se achou no direito de provar uma hipótese errada. A nota publicada pelo jornal era o "depoimento" que um cidadão teria dado ao repórter da revista, exaltando as obras da Transcarioca::      

Jornal Extra:
“Agora a praia vai ficar mais perto de casa”: Depoimento

Moro na praia e trabalho no Andaraí. Mas vou ser passageiro assíduo do BRT para chegar ao meu lazer preferido: a praia. O período de obras foi de sofrimento para quem mora onde o Transcarioca vai passar. Por isso, depois que tudo estiver pronto, será a hora de relaxar e aproveitar.

Felizmente hoje temos redes sociais como Facebook e o Twitter, nos quais podemos nos defender. Um pouco depois da notícia publicada, o rapaz que deu a entrevista, Ubirajan Moreira, respondeu:

Facebook:
UM ABSURDO! 

Modificaram tudo o que eu disse! Em momento algum toquei no assunto PRAIA...! Falei dos atrasos no cronograma da obra, do descaso com a população no entorno , da falta de sinalização e de segurança (pois com a obra, alguns sinais apagaram) e tb falei que a obra não seria a solução final pro trânsito na região ... !

Aí o babaca do repórter vai e me coloca como um alienado suburbano que tá mais preocupado com o lazer da praia que com os problemas gerados com a obra ...!  


Até 27 de março a postagem havia recebido 13324 curtidas e 10807 compartilhamentos, confirmando que muitos se identificaram com a indignação de Ubirajan ao ver seu depoimento deturpado por um repórter de um jornal de grande circulação, que ao interferir no depoimento do rapaz, deixou de lado o jornalismo e terminou escrevendo a favor da Transcarioca. A prefeitura deve estar feliz com a propaganda inesperada.  

O senso comum é um grande inimigo do jornalismo. Apostaram que Ubirajan estaria  feliz com as obras, "para poder ficar mais perto da praia" Sua indignação no depoimento é visível. E o número de compartilhamentos ou curtidas que  causou só demonstra que se a imprensa - que vem perdendo leitores para a internet - não se dispuser a rever alguns conceitos, ela ficará cada vez mais afastada do grande público. 

Um jornalista não diz a verdade, pois não existe verdade absoluta. Mas ele deve procurar a versão mais próxima dos fatos. Ao apostar em ideias pré-concebidas e mesmo preconceituosas, perde o público, que recebe uma informação falsa, e perde o jornalismo, que ruma contra a realidade.