sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Tempos de paz: cinema e reflexão

- O senhor tem dez minutos para me fazer chorar.
- Isso está no regulamento?
- Eu sou o regulamento.


Em cartaz nos cinemas, o longa "Tempos de paz", de Daniel Filho, merece ser visto por todos que buscam um cinema mais preocupado em levar ao espectador uma reflexão - ainda que carregada de emoção - do que o mero entretenimento de fim de semana. Vou além e acrescento: "Tempos de paz" (adaptado da premiada peça "Novas diretrizes em tempos de paz", de Bosco Brasil, também autor do roteiro) é um antídoto em favor da arte, um estímulo contra a mediocridade que teima em nos perseguir a cada minuto, a cada instante deste dia a dia cada vez mais desprovido de delicadeza.



Enquanto a política - e particularmente o Senando brasileiro - mergulha no nepotismo e na troca dos favores escusos mais descarados, enquanto a educação básica continua de mal a pior, enquanto os cinemas de shopping e teatros dos grandes centros levam ao consumidor uma dieta de superficialidade, lugares comuns e infantilidade involuntária, o longa de Daniel Filho surge como uma jóia bruta, aguardando ansiosamente para ser descoberta e lapidada por espíritos com olhos livres.

A trama é, à princípio, simples: um ex-ator polonês, Clausewitz (Dan Stullbach), junto com outros europeus, está chegando ao porto do Rio de Janeiro. Estamos em 1945: a Segunda Guerra Mundial finalmente acabou e ele deseja morar no Brasil, começando vida nova como agricultor. As crueldades que presenciou na guerra lhe afetaram sobremaneira, a ponto de Clausewitz achar que não há mais lugar para exerceu seu ofício (o teatro) após o conflito mundial. Enquanto isso, no Brasil, o presidente Getúlio Vargas acaba de conceder anistia a comunistas e outros presos políticos. É tempo de buscar "novas diretrizes em tempos de paz".

Ao chegar ao porto, o polonês, que fala perfeitamente a língua portuguesa, é detido por membros da segurança e levado para um interrogatório. Ali, ele conhecerá o sinistro Segismundo (Tony Ramos), um ex-torturador que trabalhara para o governo e que se vê de repente sem atividade, devido à anistia. O cerne do filme tratará de um tenso embate entre o torturador - que acredita ser Clausewitz um agente nazista infiltrado no Brasil e quer deportá-lo imediatamente -, e o ator - que terá apenas a força das palavras e a ajuda de sua arte para livrar-se de seu adversário.

Um dos grandes méritos do diretor Daniel Filho - que sofre até hoje preconceito por parte da crítica, em parte por ter vindo da TV, e muito em parte por fazer sucesso com seus filmes num país em que, como dizia Tom Jobim, o sucesso é "ofensa pessoal" - foi ter mantido no filme os dois atores protagonistas da peça. À época da peça, Tony Ramos e Dan Stulbach dividiram o prêmio de melhor ator do ano. O trabalho excepcional e comovente dos dois em cena demonstra como o prêmio foi merecido.

A pairar acima de tudo, no entanto, está o belíssimo texto de Bosco Brasil, um alento para que pensemos que é possível reencontrar nossa humanidade por meio da arte. Ao se ver encurralado pelo torturador que deseja mandá-lo de volta, Clausewitz não vê outra saída a não ser apelar para seu trabalho como ator a fim de desequilibrar emocionalmente seu adversário e virar o jogo a seu favor. Tudo isso em meio a diálogos precisos e muitas vezes brilhantes.

"Tempos de paz" demonstra que a arte, presa hoje a campanhas publicitárias, negócios milionários, esquematismos previsíveis e textos rasteiros também pode mudar as pessoas. E ainda pode salvar vidas.

domingo, 16 de agosto de 2009

Hitchcock: seu nome é suspense

Na última quarta-feira, 13 de agosto, o mundo do cinema comemorou a data em que o cineasta Alfred Hitchcock completaria 110 anos. Difícil lembrar de comemoração mais justa. Quando vivo, Hitchcock foi um dos mais populares diretores de seu tempo: não só inventou as regras básicas do suspense cinematográfico (gerando inúmeros imitadores, nenhum conseguiu igualá-lo), como também foi um gênio do marketing. É uma delícia rever pelo youtube o clássico trailer de "Psicose", no qual o próprio cineasta circula pela sinistra mansão de Norman Bates comentando ironicamente as cenas de crimes que o público veria; ao final, depois de lembrar a todos que banheiros podem ser lugares muito perigosos, o cineasta faz uma pausa, puxa a cortina do chuveiro e ...ora, vou deixar vocês no suspense! Confiram.

Muito antes de os franceses criarem o termo "cinema de autor", a simples menção de que um "filme de Hichcock" estaria estreando já era motivo para levar milhares de pessoas aos cinemas. Qual a razão deste fascínio do público pelo medo? O que leva até hoje milhares de pessoas a procurarem filmes de suspense e intriga, a ficar por duas horas experimentando a sensação de medo e aflição para ao fim respirarem aliviados?

Talvez apenas o prazer de assistir a uma história bem contada e se deixar levar pela emoção. Nos filmes hitchcoquianos, a manipulação das emoções do público era essencial. Um exemplo clássico de construção do suspense foi dado pelo cineasta ao diretor francês François Truffaut no livro "Hitchcock/Truffaut": "Se um homem está caminhando até sua casa e, ao abrir a porta, uma bomba explodir, o público levará um susto. Mas o susto será certamente bem maior se o público souber da existência de uma bomba-relógio e contar os segundos que faltam para a explosão".

Meu filme preferido do mestre é "Um corpo que cai", um suspense mórbido estrelado por James Stewart e uma Kim Novak no auge da beleza. Vi o clássico quando tinha uns 20 anos, no Estação Botafogo, aqui no Rio, e saí do cinema extasiado com a trama, a belíssima trilha sonora de Bernard Hermann e a direção.

O cineasta que tinha o mesmo cuidado ao filmar tanto cenas de suspense como cenas de amor deixou inúmeras sequências inesquecíveis na história, daquelas que cabem em qualquer boa antologia cinematográfica. Como não lembrar da cena do assassinato do chuveiro logo ao começo de "Psicose"; do beijo de Grace Kelly em James Stewart em "Janela Indiscreta"; do inofensivo brinquedo no parque infantil atulhado de corvos em "Os pássaros"; de um James Stewart desesperado para evitar um assassinato dentro de uma sala de concertos, cujo tiro seria disparado pelo assassino na exata hora do bater dos pratos, em "O homem que sabia demais"?

Para homenageá-lo, escolhi a cena final de outro clássico: "Intriga internacional", filme sensualíssimo no qual o humor e o suspense se mesclam de forma genial. Aliás, dificilmente você verá casal mais charmoso que Cary Grant e Eva Marie Saint, protagonistas aqui. Confiram a sensacional montagem final, que corta de uma cena num despenhadeiro diretamente para um casal em lua de mel dentro de um trem, culminando com uma sutilíssima insinuação sexual (deixei as legendas em italiano só para "apimentar" mais a cena).



Prova de que Hitchcock não estava interessado apenas em amedrontar o público. O cara realmente sabia demais...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Hiroshima: 64 anos depois ou A reportagem do século

Há exatos 45 anos, numa manhã nublada, ela foi lançada sobre a cidade. Tratava-se de um dos inventos mais sinistros já inventados pelo homem: a bomba atômica. Em questão de minutos a cidade de Hiroshima perdeu 70 mil vidas. Durante o ano seguinte, mais 30 mil pessoas expostas à radiação morreriam. Ou seja, praticamente 100 mil vidas ceifadas pelo lançamento de uma bomba, com o propósito de dar fim à guerra. Até hoje, há uma controvérsia sobre se os ataques nucleares (três dias depois, seria a vez de Nagasaki receber uma segunda bomba atômica) foram de fato necessários para pôr fim à guerra. Pacifistas alegam que a rendição do Japão era iminente; militares e políticos ainda hoje retrucam, afirmando que sem as bombas a Segunda Guerra Mundial se prolongaria ainda mais.

Ainda assim: não haveria uma forma de pôr fim à guerra sem matar tantos, milhares de vidas?

Acontecimentos trágicos como esse não devem ser esquecidos, para que a humanidade sempre saiba que deve evitá-los. Hoje, no Japão, 50 mil pessoas reuniram-se no monumento dedicado às vítimas da bomba, e o prefeito de Hiroshima pediu o banimento das armas atômicas.

Louvável iniciativa, porém uma utopia num mundo revestido de conflitos, no qual países autoritários como a Coreia do Norte ainda constroem armas atômicas como intimidação.

A tragédia rendeu uma infinidade de livros nos quatro cantos do mundo. Aqui no blog, gostaria de lembrar de apenas um deles: "Hiroshima", do jornalista americano John Hersey. Um ano depois do fim da guerra, Hersey viajou à Hiroshima para uma reportagem: o editor da New Yorker, a revista em que trabalhava, pedira ao repórter um relato sobre o que significava uma cidade ser atingida pela bomba atômica. O caminho escolhido pelo jornalista foi simples: escolheu e entrevistou seis pessoas que haviam sobrevivido ao ataque.

Vejamos o começo da longa reportagem: estão ali todas as seis perguntas básicas de como elaborar um lide (o quê, quem, quando, como, onde e porquê), escrito de forma precisa, concisa e envolvente:

"No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do japão, quando a bomba atômica explodiou sobre Hiroshima, a srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do leste da Ásia, acabava de sentar-se a sua mesa, no departamento de pessoal da fábrica, e voltava a cabeça para falar com sua colega da escrivaninha ao lado. Nesse exato momento o dr. Masakazu Fujii se acomodava para ler o Asashi de Osaka no terraço de seu hospital particular,suspenso sobre ujm dos sete rios deltaicos que cortam Hiroshima; a sra. Hatsuyo Nakamura, viúva de um alfaiate, observava, da janela de sua cozinha, a demolição da casa vizinha, situada num local que a defesa aérea reservara às faixas de contenção de incêndios; o padre Wilhelm Kleinsorge, jesuíta alemão, lia a Stimmen der Zeidt, revista da Companhia de Jesus, deitado num catre, no terceiro e último andar da casa da missão de sua ordem; o dr. Terufumi Sasaki, jovem cirurgião, caminhava por um dos corredores do grande e moderno hospital da Cruz Vermelha local, levando ujma amostra de sangue para realizar um teste de Wasserman; e o reverendo Kiyoshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista de Hiroshima, parava na porta de um ricaço de Koi, bairro do oeste da cidade, para descarregar um carrinho de mão cheio de coisas que resolvera transferir para ali por temer o maciço ataque do B-29, que a população aguardava. Uma centena de milhares de pessoas foram mortas pela bomba atômica, e essas seis são algumas das que sobreviveram. Ainda se perguntam por que estão vivas, quando tantos morreram. Cada uma delas atribui sua sobrevivência ao acaso ou a um ato da própria vontade - um passo dado a tempo, uma decisão de entrar em casa, o fato de tomar um bonde e não outro. Agora cada uma delas sabe que no ato de sobreviver viveu uuma dúzia de vidas e viu mais mortes do que jamais teria imaginado ver. Na época não sabiam nada disso."

Ao contar a história do lançamento das bombas pelo ponto de vista dos sobreviventes, Hersey consegiuiu aliar uma alta carga dramática ao rigor dos fatos, tão exigido no jornalismo. Após a publicação da reportagem na revista e mais tarde em livro - com grande impacto entre o público - o mundo ocidental enfim teve consciência da catástrofe ao fim da guerra.

No final de 1999, uma enquete com mais de 100 jornalistas e escritores elegeu "Hiroshima" como a melhor reportagem do século XX. Vale a pena conferir, principalmente aqueles que desejam ingressar no fascinante mundo do jornalismo - com ou sem diploma.