quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A morte de um mestre da entrevista: Geneton Moraes Neto


Numa sala, estão o repórter e dois homens poderosos. Um deles é um ex-presidente dos Estados Unidos, famoso por sua luta pelos direitos humanos. O outro, o primeiro negro a se tornar arcebispo da Cidade do Cabo, em plena vigência do apartheid sul-africano. . Ambos receberam o Prêmio Nobel da Paz. Atendem pelos nomes de Jimmy Carter e Desmond Tutu. A simples escolha dos entrevistados poderia alarmar repórteres mais inexperientes. Mas este não. Calmamente, ele confere sua folha de perguntas, Depois, olha para o ex-presidente americano e dispara:

- O senhor compraria um carro usado do ex-presidente Bush?

A pergunta inusitada provoca gargalhadas do bispo africano e um sorriso amarelo de Carter, crítico da política intervencionista levada a cabo por Bush. Eles estão sendo entrevistados por Geneton Moraes Neto. um dos maiores jornalistas brasileiros, morto esta semana. Ainda é cedo para dimensionar o impacto de o termos perdido tão cedo. Geneton era uma usina de criatividade, um pernambucano que começou ainda aos 15 anos, na imprensa escrita, e que mais tarde migrou para a televisão. Amante da boa reportagem, no começo achou que não teria futuro na TV. Felizmente, estava errado. Em vários telejornais da Globo e depois na Globonews, produziu e realizou inúmeras reportagens sensacionais, como os dossiês que viraram especiais jornalísticos da emissora.

O público que acompanha televisão, porém, pode ter se espantado com as várias homenagens que a televisão e os jornais fizeram para ele na ocasião de sua morte, Geneton era um jornalista que, como Tim Lopes, atuava nas internas. Por vezes, nem quis usar sua própria voz para narrar as reportagens que produzira, preferindo escalar atores ou locutores da emissora para narrar o que apurara. Também não tinha aquele porte clássico do repórter de televisão: estatura média, um tanto gordo, óculos grossos, costeletas e cabelos por vezes despenteados.

O que mais o inclinava ao trabalho era uma boa história. e ele conseguiu várias. Mesmo que para tanto tivesse que brigar pelas pautas dentro da própria redação. Uma vez, chegou à redação eufórico, informando que havia feito contato com a última mulher viva do naufrágio do Titanic. Nas suas mãos e com sua capacidade de entrevistador, seria com certeza uma grande história, mas os editores perguntaram: "quem ainda liga para o Titanic?" Geneton desceu para tomar um café no bar em frente à TV e contou a pauta frustrada a quem estava lá, Todos disseram que seria uma ótima história, o que o fez voltar e brigar até conseguir realizar a entrevista. Foi um de seus grandes momentos na televisão.  Como no dossiê sobre os 11 jogadores da seleção brasileira de 1950, derrotados pelo Uruguai e as consequências deste fato:




Há dois anos, compareci a um debate na biblioteca de Botafogo em que estavam presentes o jornalista Mauro Ventura, que acabara de lançar o livro-reportagem "O espetáculo mais triste da Terra", sobre o trágico incêndio do Gran Circo Norte-Americano em Niterói, nos anos 1960, e Geneton, que, pra variar, roubou a cena com seus comentários irônicos e uma verdadeira paixão pela profissão. Da necessidade de sair da redação para ir às ruas, lugar "onde estavam as boas histórias". Da necessidade de lutar contra a acomodação e o jornalismo chapa-branca, desconfiando sempre do que dizem. Sua famosa frase "Fazer jornalismo é produzir memória" tem sido repetida esta semana nas homenagens a Geneton. Ao entrevistar grandes nomes de forma incisiva, confrontando-os com os fatos (como na marcante entrevista com o ex-general Newton Cruz, ou mesmo diante de um dissimulado Paulo Maluf) mas sem nunca desrespeitar o entrevistado, fazendo-os saírem da zona de conforto, Geneton produziu memória para as próximas gerações, e um exemplo está na última entrevista do poeta Carlos Drummond de Andrade em vida, dada ao repórter.

Espero de verdade que as novas gerações sigam fazendo do jornalismo uma profissão digna, e não essa permissividade com a publicidade cada vez mais latente, em que matérias e reportagens são cada vez mais realizadas apenas diante de um computador, muitas abastecidas por assessorias de imprensa, que zelam muito mais por uma boa imagem de suas empresas do que boas histórias.

O grande jornalista que se foi esta semana era dono de um estilo raro nas redações e, numa primeira reflexão, não parece ter deixado herdeiros. Espero estar errado e que surja logo um outro alguém o qual, quando me perguntarem em sala de aula qual o repórter a ficar de olho, eu o indique.

Pois, quando o assunto era televisão, eu sempre respondia: acompanhem o Geneton.




sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Cobertura das Olimpíadas - quando o interesse comercial chega em primeiro

Eu gostaria de começar essa postagem assim:

O Brasil inteiro está na expectativa da abertura dos jogos olímpicos, pela primeira vez sendo disputados na América do Sul. A população aguarda ansiosamente pela maior abertura de um evento esportivo de todos os tempos, cujas competições certamente estarão entre as maiores da história. A passagem da tocha olímpica inflou os ânimos ufanistas do povo brasileiro, que fez questão de acompanhá-la por mais de 300 cidades nos quatro cantos do país. Nesta sexta, a apoteose dos jogos olímpicos modernos tem início, com transmissão televisiva para todo o planeta. Todos os jogos, dentre todos os esportes, serão transmitidos pelas TVs aberta e a cabo, e a expectativa é grande.

Notou algo errado com o parágrafo acima? Pois é mais ou menos como o comitê olímpico brasileiro - e grande parte dos veículos de comunicação, como a TV Globo - vêm se referindo aos jogos olímpicos. Um misto de patriotismo, ufanismo e emoção que pode servir para inflar a audiência., mas que desde já sabemos quem perde:o jornalismo.  

Não precisa estar sintonizado na TV. Uma checada em dois dos maiores portais da internet, G1 e UOL, na quinta de manhã, sinaliza o contraste entre, pelo menos ali, quem apostava na informação correta e quem aposta na emoção Vejamos as principais manchetes em torno das 10 da manhã desta quinta-feira, véspera dos jogos:

UOL: "Na véspera da Olimpíada, crise na Rio-2016 afeta organização dos jogos"

G1 "Em cadeira de rodas, Zagallo recebe tocha de Parreira e emociona"
Subtítulo: Na internet, muitos lembram que 'chama olímpica' tem 13 letras, número da sorte do ex-técnico campeão do mundo

Enquanto o portal UOL aponta uma possível crise na organização do evento (indo ao fatos), o portal concorrente aposta na emoção. Hoje mesmo, na sexta, algumas horas antes do início do evento, vejo um anúncio na TV Globo: imagens de atletas se superando. comemorando, chorando etc. Ao fundo a trilha sonora: "Emoções", de Roberto Carlos.

Na disciplina específica do jornalismo esportivo, alunos que querem seguir carreira na área são advertidos pelos professores que na cobertura de jogos é permitido um viés mais emocional. Concordo. Lembro de Nelson Rodrigues, ao reclamar dos idiotas da objetividade, os quais, segundo ele, teriam abolido o ponto de exclamação das manchetes. O cronista reclamava ironicamente que quando o Brasil se sagrasse campeão mundial de futebol a manchete viria tal qual um manifesto fúnebre...

Mas há que se encontrar um meio termo. E isso é difícil para aqueles veículos cujos anunciantes investem milhões em propaganda. E estes anunciantes querem retorno, querem audiência. Quanto mais gente assistindo aos jogos, melhor. Para os anunciantes, para os canais de TV, para os portais da internet...mas não para aquela parte do público que prefere ser bem informado (e se emocionar com os jogos, por que não?) a ter sua telinha invadida por mensagens propagandísticas para vender produtos enquanto passam os jogos.

Está para ser contada a outra história do périplo da tocha olímpica ao longo dos 98 dias e quase 300 cidades pelo território brasileiro. Enquanto na TV era só alegria, a realidade era outra, com manifestações em várias capitais contra o governo, protestos contra a Globo, gente querendo apagar a chama das tochas, eventos de apoio cancelados por medo de tumulto e até uma onça morta.

Bem, talvez após os jogos. Enquanto isso, uma boa olimpíada para os atletas brasileiros. E para todos nós.