quinta-feira, 18 de junho de 2015

Essa música me lembra uma história: "Sinhá"

Dias atrás, num jantar entre amigos, alguém lembrou de uma grande música composta recentemente por Chico Buarque e João Bosco: Sinhá. Se não fosse a fragmentação causada pela internet e a consequente perda de força das rádios musicais, não tenho dúvidas de que que ela seria considerada aquilo que chamávamos anteriormente de "clássico instantâneo".

Sinhá é a última música do último disco de Chico Buarque, intitulado apenas "Chico".



A letra da música conta uma história passada no tempo dos engenhos, num Brasil marcado pela escravidão, este flagelo que nosso país pode se envergonhar de ter sido a última nação das Américas a abolir. Os versos de Chico poderiam poderiam muito bem estar numa passagem de Casa Grande e Senzala, o clássico livro de Gilberto Freire que nos fez deixar de ver a miscigenação como uma característica ruim do Brasil.

A música é uma conjunção muito bem feita entre o Chico Buarque ficcionista, autor de romances, e o músico, aqui em parceria com João Bosco, que faz o coro de "lamento" do negro preso e torturado, acusado de "olhar Sinhá" tomando banho. Atitude altamente punível, já que Sinhá era a mulher do dono da fazenda, o patriarca que mandava em todos.  

Mas nem tudo é o que parece. Ao longo da canção, temos o lamento do negro tentando argumentar que não fizera nada com Sinhá: Se a dona se despiu, Eu já andava além, Estava na moenda, Estava para Xerém. Frente à ameaça e a realidade de ter seu corpo talhado e os olhos perfurados por tão vil procedimento, o escravo chega a apelar para o deus cristão, rogando ao senhor que chora em iorubá, mas ora por Jesus. O senhor não se comove e ao escravo é tirada a luz: cegam-no.

Mas, uma ouvida mais atenta da canção suscita uma pergunta: será que o escravo realmente não fez nada com Sinhá?

Há dois anos, lecionei a disciplina Realidade Sócio-Política e Cultural Brasileira para alunos do curso de Publicidade e Propaganda da faculdade em que dou aulas. Certo dia, o tema da aula era justamente o livro de Gilberto Freire. Ao discorrer sobre o cotidiano das grandes fazendas brasileiras dos séculos XVII e XVIII, resolvi mostrar para a turma o vídeo postado aqui, com Chico Buarque e João Bosco interpretando "Sinhá". Mas a letra deveria vir junto. Então, após mostrar o vídeo à turma, discuti com a  turma a letra, falando que, na verdade, se prestarmos atenção, não fora o escravo que inadvertidamente "olhara" Sinhá. Mas sim ela, Sinhá, a mulher do todo-poderoso da fazenda, que ao olhar para o escravo ficara "excitadíssima".  Para abstrair-se da tentação, ela própria o denuncia. O escravo é pego e torturado até ficar cego.

Acabei a explicação e vi que muita gente estava embasbacada. Até que um garoto mais atrás comentou:

- Se a gente escreve essa palavra na sua prova [excitadíssima] você ia tirar pontos?

(Lembrei agora que, num país marcado pelo forte racismo como os Estados Unidos - em que até meados do século XX o casamento inter-racial era proibido - muitos negros foram perseguidos, presos e até linchados por brancos justamente pelo crime de "olharem" mulheres brancas. O fato inspirou o professor e poeta judeu Abel Meeropol a compor a canção Strange fruit, que se tornaria um dos principais clássicos do repertório de Billie Holyday. As "estranhas frutas" as quais se referia o poeta eram os corpos dos negros linchados, presos nos galhos de árvores na região sul daquele país).

Voltando à mesa com amigos. Uma amiga, psicóloga, sustentou que o escravo não só mexera com a libido de Sinhá, como eles teriam tido relações sexuais. Para expurgar seu "pecado", a própria sinhá o entrega ao dono do engenho...para ser torturado.

Um homem poderoso, o "feroz senhor do engenho", patriarca de uma sociedade machista e dono de tudo e de todos ali. Um homem que certamente não ia para cama apenas com Sinhá, mas com várias escravas, se considerarmos a descrição do cotidiano nas senzalas, segundo Freire. E que, possivelmente, a julgar pelos últimos versos da canção, teria torturado e cegado um de seus próprios filhos:

 E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

Espertamente, Chico e João Bosco não deixam claro na canção se Sinhá e o escravo chegaram às vias de fato. Apenas insinuam, deixando o resto com a imaginação de quem a ouve. A tragédia exposta na trama é saber que, durante o tempo da escravidão, não só ter relações sexuais proibidas, mas simplesmente olhar o corpo de alguém em condições hierárquicas superiores, era algo punível com a tortura ou mesmo a morte.