sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Marina de La Riva e o desafio do segundo disco

Tomo a liberdade de publicar aqui uma crônica que escrevi para o blog de uma amiga, Janaína Faustino ("Já Ouviu?"), sobre uma cantora da qual gosto muito. Com isso, espero poder voltar a escrever regularmente por aqui. Sem periodicidade definida (um desafio ainda difícil, vide os meses parado...) mas com a mesma vontade de postar comentários, crônicas, críticas, bobagens...enfim, tudo aquilo que acenda a vontade de escrever e, como dizia um grande escritor colombiano, "ajude a manter a mão trabalhando". Sendo assim, recomecemos, pois.

Marina es de La Riva, de Cuba y del Brasil

“No te quiero si no por que ter quiero//Y de quererte a no quererte llego//Y de esperarte cuando no te espero//Llega my corazón Del frio al fuego//Y em esta estoria solo yo me muero//Y moriré de amor por que te quiero//Y me quiero amor, a sangre y fuego” Soneto LXVI (Pablo Neruda e Luiz Felipe Gama)

Certa vez, Tom Jobim afirmou que a melhor música popular do século XX tinha sua origem no entrecruzamento das músicas de três países: Estados Unidos, Cuba e Brasil. Para Jobim, a qualidade da música popular destes países teria em comum o fato de ter sido criada em seus primórdios por negros – nos EUA, daria origem ao blues e ao jazz; em Cuba, à salsa e o bolero; no Brasil, ao samba. Ou seja, a África e seus descendentes de escravos seriam um referencial comum. Música, ao contrário do que pensavam os puristas do século XIX (quando esta era privilégio das elites, e dificilmente saía dos salões da realeza), é mistura. Com a entrada em cena do rádio, a música popular demorou, mas aos poucos foi galgando seu sucesso junto ao público. Gêneros de sucesso internacional surgidos em meados do século XX, como o rock n’ roll, o bolero e a bossa nova (apenas para ficarmos nos três países citados) foram criados também na mistura entre a canção pop negra e a musicalidade livre de compositores brancos sem preconceito. Este preâmbulo é apenas para abrir caminho a uma cantora que literalmente tem sua origem na mistura (em sentido amplo): ela é filha de pai cubano e mãe brasileira. Falo de Marina de La Riva, que está lançando “Idilio”, o aguardado sucessor do primeiro disco, de 2007.

Como diria um narrador em castellano, yo me recuerdo. A primeira vez que vi e ouvi Marina de La Riva foi em Paraty, em 2007, durante a festa literária FLIP. Havia um bar na Praça da Matriz especializado em músicas latinas e naquele dia haveria uma festa fechada. Mesmo barrados no baile, aquele primeiro contato com a cantora renderia uma pérola. Da praça, ao ouvir o ritmo suingado que vinha lá de dentro e a voz da bela cantora, alguém logo a achou parecida com a atriz Penélope Cruz. “Ué, mas a Penélope Cruz virou cantora?”. Logo saberíamos que a cantante era na verdade brasileira, e acabava de lançar seu primeiro disco, entremeado de canções em português e espanhol. O tempo passou, Marina seguiu em frente cantando e fazendo shows, embora jamais tenha virado uma cantora popular de fato. Era como se os fãs de música d’além Paraty estivessem também “barrados” às interpretações de Marina. Seu estilo sofisticado, longe daquele predestinado às FMs, sem emanar cantoras como Marisa Monte e afins, parecia confiná-la a um nicho conhecido apenas por uma nata de aficionados em música. Segura de si, ela foi em frente. Lançou um álbum ao vivo (“Ao vivo em São Paulo”), e participou na TV do programa Som Brasil, da Globo, em homenagem a Lulu Santos, convidada pelo próprio - quando deu um molho de salsa bastante caliente ao sucesso pop “Condição”. Marina seguiu na estrada, realizando seus shows e reunindo ideias para um novo trabalho.

Em 2012, a cantora finalmente lançou seu aguardado segundo álbum de estúdio. “Idílio”quer dizer romance em espanhol, e é um álbum mais denso e bem produzido que o anterior. Se um diferencial do disco de estreia era justamente a confluência entre canções cubanas e brasileiras, o que a afastava de saída do ecletismo reinante das novas cantoras brasileiras (situação que pode render tanto pérolas como equívocos), em “Idílio”, ela amplia o leque e vai mais além na mistura de ritmos, trazendo para sua obra ritmos ligados a Porto Rico, Argentina e Espanha. Ao falar de densidade, releia o poema de Pablo Neruda no alto deste texto. Ela está presente na faixa “Voy a tatuarme”, de Amaury Gutierrez, onde a letra derramada vira uma animada rumba, e que rendeu um belo videoclipe gravado em Buenos Aires.



Se em uma das melhores faixas do primeiro disco – “Ojos malignos - Marina pegou um bolero e transformou num samba, com a participação de Chico Buarque cantando com ela em espanhol, a fórmula continua em “idílio”, com a inusitada e bastante divertida versão de “Estúpido cupido”, que vira um animado mambo (!). (Isso mesmo, o clássico pop de Paul Anka, que na versão de Celly Campelo é aposta certa em qualquer festinha de casamento ou baile de debutante). O resultado é irresistível e chega ao disco no meio de uma ótima sequência cantada em português: a singela e um tanto sacana “Juracy” (de Antonio de Almeida e Cyro de Souza), aquela do “pode ser ou tá difícil, Juracy”?) e a deliciosa “Deixa que amanheça”, de Oswaldo Santiago quando o amante suplica à amada para ficar com ele até o amanhecer, somente para pedir marotamente, após a noite de amor, para ela permanecer, e “deixar que anoiteça”: “Espera um pouco//Deixa que amanheça//Aqui em meus braços//Recosta a cabeça//A noite é tão fria//A treva é espessa//Ouve o que eu te peço//Deixa que amanheça”. Segue o amante: “Se amanhã, estiver chuvoso o dia//Por favor, fique em minha companhia//E de nós dois, o tempo esqueça//Espera um pouco, deixa que anoiteça”. Aliás, uma das direções musicais seguidas por Marina é dar nova vida a clássicos populares das décadas de 1950 e 1960, fazendo com que os ouvintes mais velhos deem um sorriso e digam, “essa é do meu tempo”.

Marina começa o disco de forma um tanto melancólica, com a luxuosa participação do trombonista Raul de Souza, em “Añorado encuentro” de Piloto Bea e Vera Morua (Raul também participa das faixas “Dile por que mi tea”, de T. Smith e “Muñeca” de Eddie Palmieri). A faixa tem belos versos que se entregam ao ouvinte, como “Hoy, rompo las cadenas del silencio//Logro decirte, que te quiero//Que tu eres todo ló que anheio” “Idilio” tem um conceito por trás, que é uma seleção de canções de amores perdidos, refeitos, súplicas, tristezas e retornos. Em “Ausência”, de Vinícius de Moraes e Maria Medalha, Marina declara num arranjo quase acústico: “Eu tinha feito da saudade a minha amiga mais constante”. O disco segue com tristíssima “Assum Preto”, de Luis Gonzaga e Humberto Teixeira – se no primeiro álbum a cantora inseriu partes de canções mais animadas de Gonzaga, como o “Xote das meninas” e “Adeus Maria Fulê”, aqui temos a trágica história do pássaro que tem seus olhos furados para poder cantar melhor (“Mas Assum Preto, cego dos óio//Num vendo a luz, canta de dor”), apenas para comparar-se a ele no final da canção: “Também roubaram o meu amor que era a luz dos olhos meus”. A tristeza ganha tons mais atenuados na canção seguinte, “Canción de las simples cosas”, de Armanda Tejada Gomes e César Isella, dona de belos versos como “Por eso, muchacho, no partas ahora, soñando el regreso//Que el amor es simple y las cosas simples las depura el tiempo”.

Há um tom intimista que perpassa estas primeiras canções, como em “Como duele perderte”, gravada em ritmo de samba apenas com voz, violão e tamborim. Logo depois temos uma quebrada de ritmo em “Y”, em que Marina canta acompanhada apenas do violão de Daniel Oliva. É um dos únicos momentos do disco que não decolam, algo logo quebrado pela contagiante e já citada “Juracy”. O disco mantém a qualidade na faixa 10, “Dile que por mi no tema”, num arranjo jazzístico do pianista Pepe Cisneros, em que dá vontade de estalar os dedos junto à canção. O trombone de Raul de Souza volta a se fazer notar em “Muñeca”, em que a cantora faz confidências amorosas a uma...boneca. Aqui o destaque é a percussão, que faz a música começar lentinha, num quase bolero, para depois transformar-se numa bela salsa, enquanto Marina canta: “Ay mi muñeca, perdoname”. O clima “cubano” do álbum soa mais forte nestas últimas canções. “Idílio” é uma bela salsa que conta com a bateria de Pupilo, o sax de Thiago França e até palminhas da cantora e Ricardo Valverde. Marina canta novamente as dores de amores, enquanto o refrão diz “Soñando, contigo, querendo que se cumpla nuestro idílio”. As duas últimas canções continuam a falar de romances, arrebatada como em “Voy a tatuarme tu nombre” (“Voy a tatuarme tu nombre, em cada parte del cuerpo//Para que nadie te robe//Para que nadie te borre”) ou mais contida, como em "Voy a guardar mi lamento", cantada em português e espanhol (“Tudo acabado//Fiquei tão triste//Mas não me queixo//Ninguém vai me ver chorando//Eu vou guardar o meu lamento para quando estiver sozinha//Voy a guardar mi lamento para cuando yo esté sola”.


Após a audição deste belo álbum, uma reflexão se faz necessária. Seria Marina de La Riva capaz de angariar sucesso para além do público fiel e selecionado que já possui? Ou continuará, como naquela festinha fechada em Paraty, um privilégio para poucos, fãs de música mais sofisticada? Sabemos que a música cantada em espanhol não tem a mesma popularidade do pop internacional tocado na maioria das rádios, em sua grande maioria em inglês. Nos anos 1950 tivemos uma onda de música latina especialmente ligadas a salões de dança de salão, onde o bolero atingiu grande sucesso (pergunte a seus pais quais as músicas que eles dançavam nos bailes quando namoravam - há grandes chances de haver um bolero no meio). Boleros e outras canções derramadas, de amores perdidos e apaixonados, foram sufocados mais tarde com as canções ensolaradas da bossa nova e a alegria dos rocks da Jovem Guarda. Desde então, o sucesso de músicos “cantantes” na língua espanhola no Brasil foi cada vez mais esporádico, situação que vem mudando com a globalização e uma maior abertura a grupos pop argentinos, mexicanos e espanhóis. Marina de La Riva é a prova de que a música pop hoje não tem fronteiras, e o pop anglo-americano hoje tem que conviver com colegas latino-americanos e europeus. Com “Idílio”, ela demonstra algo também raro no pop atual: personalidade.