terça-feira, 27 de outubro de 2009

Cuidado: ao chegar aos EUA, você pode se transformar num "imigrante ilegal alienígena"

It's no fun being an illegal alien
No, it's no fun being an illegal alien
Genesis

Vejamos:

1 - Alienígenas vistos pelo cinema mainstream hollywoodiano. Estou num cinema no final dos anos 90. O filme na tela é o blockbuster "Homens de preto" ("Men in black"), um grande sucesso no Brasil. Os tais homens de preto são agentes de uma corporação ultra-secreta cujo objetivo é caçar alienígenas que se disfarçam em corpos de humanos. Logo no começo, os agentes interceptam um caminhão na fronteira do México com os Estados Unidos, repleto de imigrantes ilegais. Há a suspeita de que, na verdade, aqueles homens são alienígenas disfarçados. Não dá outra: após uma tentativa de fuga, os ETs são capturados pelos homens de preto.

2 - Aliens também são fashion! Junho de 2001. Num passeio breve pelas ruas de Maastrich, em férias na Holanda, impressiona a decoração das vitrines e mesmo o interior das lojas. Há bonecos de ETs para crianças, como objetos de decoração, como estampa de camisas e até como porta-cannabis (estamos na Holanda, remember). Conclusão: ETs estão na moda na Europa.

3 - Monstros X Alienígenas. Setembro de 2009. Um dos momentos preferidos que tenho junto ao meu filho é assistir com ele a trechos de desenhos e filmes na telinha do youtube. Mas neste dia ele só quer saber de um desenho: "Ben 10 Força Alienígena". Pra quem não sabe (ou não tem filhos pequenos), o desenho preferido de 10 entre 10 garotos até 10 anos narra a história de Ben, um jovem que possui um relógio de origem extraterrena e que tem poder de transformá-lo em 10 monstros. O monstro preferido de meu filho é o Chama, um híbrido de Tocha-Humana com alienígena.

4 - Alienígenas vistos pelo cinema alternativo. Outubro de 2009. No cinema, assisto ao lançamento de "Distrito 9". Num futuro não muito distante, alienígenas que sobrevoam a Terra enfrentam uma pane na nave especial que os acomodava, deixando-os parados bem no centro de Johannesburgo, África do Sul. Após dois meses, os humanos retiram os alienígenas da nave e os alocam num imenso terreno, denominado Distrito 9. Em pouco tempo, o distrito transforma-se numa imensa favela, e os ETs são objeto de preconceito e intolerância dos humanos em seu entorno. Com o crescimento da população alienígena, o governo decide realocá-los para outro distrito, mais distante e insalubre, assemelhando-se a um campo de concentração. Mas algo dará errado.

5 - Alienígenas sim, imigrantes não. Outubro de 2009. A grande sensação de vendas entre os jovens para o Halloween deste ano não foram as fantasias de bruxa, de esqueleto ou vampiro, mas sim de "Imigrante ilegal alienígena". Segundo o jornal O Globo de 25 de outubro, a fantasia consiste de uma máscara de extraterrestre, um uniforme laranja de presidiário americano e um cartão de plástico escrito "green card" (o visto permanente de entrada nos EUA). Vendeu bem até a grita da comunidade hispânica, que forçou as lojas a paralisarem as vendas. Veja abaixo a fantasia da discórdia:




Tenho sentido saudades dos tempos em que seres de outro planeta só eram lembrados em filmes B de Hollywood (quando todos os ETs já aportavam em nosso planeta, curiosamente, falando inglês), nas montagens toscas de pratos virados nas primeiras páginas de jornais sensacionalistas (e que realmente enganavam muita gente) ou nas páginas de ficção e poesia de artistas mundo afora. Mas desconfio que nosso imaginário sobre os ETs esteja mudando.

Fascínio eles sempre nos causaram. Fascínio, curiosidade e medo, como leu quem acompanha esse blog, sobre a "brincadeira" criada em 1938 por Orson Welles ao transmitir pelo rádio o clássico "Guerra dos Mundos" em formato jornalístico, como se a invasão marciana inventada por H.G. Wells fosse verdadeira. Se o outro, o exótico, nos atrai sobremaneira, o que dizer de seres que nem temos certeza se existem ou não?

Nos anos 50, em plena Guerra Fria, Hollywood não tardou a ver que os seres de outro planeta poderiam constituir uma bela metáfora de quaisquer inimigos dos Estados Unidos. O "perigo comunista" foi levado aos cinemas onde os comunas eram personificados por diversas formas de monstros, alguns patéticos, outros sinistros. E havia também os espertalhões produtores de filmes B, que não estavam nem aí para ideologias e queriam mesmo era faturar com produções de baixíssimo orçamento destinadas aos jovens teenagers. Presentes em 90% destes filmes: monstros e alienígenas.

Como vimos, o cinema difundiu a cultura americana nos quatro cantos do planeta. Os aliens viraram objeto de consumo nas ruas da Holanda e de qualquer grande centro e são celebridades cuja fama ultrapassou em muito os 15 minutos definidos por Warhol. Ídolos vão e vem, alguns ficam na memória, outros caem num ostracismo total. Mas extraterrestres sempre retornam como campeões de audiência. Quem não se emocionou com "ET", o clássico filme de Spielberg, que atire a primeira pedra. E mesmo hoje o desenho "Ben 10", com o garoto que se transforma em monstros alienígenas é o campeão de audiência do Cartoon Network.

No entanto, o uso dos aliens como tema pode também render práticas duvidosas de "homenagens" a comunidades vítimas de intolerância. "Homens de preto", de 1997, já continha em sua sequência inicial uma mensagem subliminar de preconceito contra os latinos, embora amortizada à época, pois o filme era uma comédia muitas vezes bem escrachada e contava com um ídolo negro (Will Smith) como um dos protagonistas.

Uma década depois, porém, a retirada das prateleiras da vestimenta de "imigrante ilegal alienígena" detonou uma serie de debates e provocações entre a direita conservadora e progressistas. Leio no jornal O Globo que Associações de imigrantes como a League of United Latin American Citizens (Lulac) acusaram a fantasia de "uso do Halloween para ensinar as pessoas a odiarem os latinos". Os conservadores reagiram, e grupos como a Americans for Legal Immigration (Alipac), que faz lobby em Washington em favor da expulsão de imigrantes ilegais dos EUA, pediram o imediato retorno da fantasia às lojas, a fim de acabar com "mais uma tentativa de restringir a liberdade de expressão no país".

É curioso costatar como a repressão a atividades francamente abjetas e criminosas, como a ostentação de símbolos neo-nazistas, o homofobismo, a misoginia ou simnplesmente o ódio às minorias, quando reprimidos, são logo declarados por grupos reacionários como atentados à liberdade de expressão. O que estava em jogo na venda da fantasia que provocou tanta discórdia não era, porém, a liberdade de expressão, mas simplesmente a humilhação sobre uma comunidade cujo preconceito só fez aumentar com a crise econômica de 2008. Não é ensinando às crianças que o vizinho latino pode ser um ET disfarçado que se conseguirá construir um bom dálogo no futuro.

Eu receitaria para estes grupos conservadores e ultradireitistras o filme "Distrito 9", originalíssimo filme produzido por Peter Jackson (diretor da trilogia "O senhor dos anéis"), que mostra extraterrrestres subjugados pelos seres humanos, numa imensa favela onde o conflito é iminente. Não à toa, o filme é passado na África do Sul, país que até as últimas décadas do século XX envergonhou o mundo com uma dos mais nefastos regimes de segregação racial: o apartheid. Além da clara metáfora dos dos negros e minorias como alienígenas explorados, ali os vilões são os humanos de uma corporação multinacional de fabricantes de armas, que roubam a tecnologia dos extraterrestres no campo, ao mesmo tempo que os usam para experiências genéticas que resultam na morte dos aliens. Tudo muda quando um dos líderes dos humanos, designado para comandar a retirada dos milhares de extraterrestres para fora do Distrito 9, é afetado por um líquido dentro de um barraco que inspecionava, e começa aos poucos se tornar ele mesmo um alienígena.

Seria interessante que a tal liga conservadora que prega a expulsão dos imigrantes dos Estados Unidos experimentasse viver algum tempo como hispânicos e provassem do preconceito que os imigrantes ilegais já conhecem. Talvez assim não fosse mais preciso criar as tais fantasias de "imigrantes ilegais alienígenas". E então, o imaginário sobre os extraterrestres talvez voltasse a ser apenas com considerações acerca da existência ou não destes seres.

Finalizando, sou daqueles que acreditam que pode sim haver vida em outros planetas, embora não fique por aí procurando por discos voadores. Mas concordo inteiramente com uma frase que li num cartum antigo do personagem de quadrinhos Calvin. Dizia mais ou menos assim:

"A maior prova de que existe vida inteligente em outros planetas é o fato de que eles jamais fizeram contato conosco".


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Uma foto e uma lição de jornalismo

Uma das fotos do ano:






Líderes políticos gostam de ser fotografados em grandes momentos. Se possível, cobertos de medalhas e condecorações, acenando para as multidões etc. Não gostam de fotos inesperadas, aquelas que involuntariamente revelam o que ele não quer. A inusitada foto do presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, dormindo na embaixada brasileira com seu chapelão característico, rodou o mundo e já é uma das imagens do ano, por seu alto grau de simbolismo. É fotojornalismo no que tem de melhor: um instantâneo do mesmo nível daquele tirado do ex-presidente Jânio Quadros, com as pernas retorcidas, pouco antes de sair de cena e mudar a história do Brasil.

Ao registrar Zelaya deitado, com as pernas para o alto e dormindo, em pleno território brasileiro no exterior, o fotógrafo Edgard Garrido conseguiu demonstrar toda a empáfia de um governante prostrado e ciente de que arrumou uma bela confusão. Não resisti e transcrevo a seguir a reportagem escrita pelo fotógrafo (republicada esta semana pelo JB), que ainda está na embaixada brasileira de Honduras, e seu retrato dos dias lá dentro.

Se a imagem retratada é um excelente momento do fotojornalismo, o texto demonstra que, melhor que qualquer noticiário copiado de agências internacionais, nada substitui a presença in loco do repórter. E faz o jornalismo honrar a definição de Gay Talese, como a "arte de sujar os sapatos", ou seja: ir aonde a notícia está, seja ela onde estiver.

"Dormi com o dedo no obturador"
Edgard Garrido FOTÓGRAFO DA REUTERS EM TEGUCIGALPA.

Há duas semanas, durmo com o dedo no botão do obturador, a poucos metros do lugar onde o presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, se refugia à espera de uma eventual volta ao poder.

Como fotógrafo da Reuters em Honduras, fui um dos poucos jornalistas que conseguiram se infiltrar na Embaixada do Brasil quando Zelaya ali buscou refúgio, depois de voltar clandestinamente do exílio para onde fora enviado por militares golpistas em 28 de junho.

Duas semanas depois, Zelaya continua entrincheirado na embaixada, que está cercada por soldados e policiais hostis a ele. E eu também continuo – privilegiado por levar imagens ao mundo, mas lutando com a escassez de comida, a falta de sono e a montanha-russa de emoções.

Conseguir uma imagem de Zelaya dormindo com o seu famoso chapéu de boiadeiro sobre o rosto foi um ponto alto, e a foto correu o mundo.

Mas estou cansado de dormir no chão e de comer mal, e meus nervos foram abalados pela intimidação das tropas no lado de fora e pela incerteza sobre quando isto vai acabar.

Zelaya e o presidente de fato Roberto Micheletti se preparam para negociações que podem acabar com o impasse. Mas Zelaya insiste em voltar ao poder, enquanto Micheletti diz que ele deveria ser julgado por traição. Assim, não está claro quando a crise irá acabar, e com ela esta minha pauta excepcional e desconfortável.

Tudo começou com um boletim informativo dando conta da volta de Zelaya.

Dei um beijo de despedida na minha mulher e no meu filho e corri para fora de casa com tanta pressa que até esqueci de calçar as meias.

“Tchau, vejo vocês logo mais!”, disse à minha família.

Mal sabia eu.

Depois de irmos atrás de um falso rumor de que Zelaya estaria em um prédio da ONU, um grupo de seguidores e jornalistas correu para a embaixada brasileira, que funciona num modesto sobrado. Não foi difícil entrar.

Disseram-me que Zelaya estava na sala ao lado, onde permanece até hoje. As pessoas entrando e saindo da sala confirmavam sua presença, mas eu precisava vê-lo. Uma porta se abriu, e lá estava eu. Tirei duas fotos e mandei meu primeiro despacho.

Tensões noturnas Zelaya decidiu acampar bem onde estava. Seus seguidores comemoraram, e eu dormi do lado de fora. Com o chão de cimento como colchão e a mochila como travesseiro, não conseguia dormir em meio aos gritos e cânticos.

O governo reagiu rapidamente, com soldados e policiais dissolvendo as manifestações pró-Zelaya em frente à embaixada e usando um dispositivo de alta frequência para incomodar quem estava do lado de dentro.

A tensão cresceu, e tememos que ocorresse uma ação militar para ocupar a embaixada.

Dormi com o dedo praticamente no botão do obturador, preparado para o que parecia ser uma intervenção iminente, preparado para me proteger, preparado para disparar.

Depois de dois dias dentro da embaixada, já não havia comida, não havia telefone, não havia descanso, não havia banho e não havia roupas limpas.

À noite, os soldados batiam nos seus escudos. Tornou-se uma guerra de nervos. Pedras caíam no teto enquanto o hino hondurenho era tocado a todo volume perto da embaixada.

Aí vieram as acusações de um ataque com gás. Zelaya afirma que mercenários estariam tentando expulsá-lo usando um gás tóxico. Algumas pessoas na embaixada tinham sangramentos nasais. Do lado de fora, as autoridades diziam que os odores eram de uma equipe de faxina nos arredores. Não estava claro o que realmente acontecia.

Depois, pelo menos, a tática de pressão arrefeceu, e eu comecei a receber comida, roupas limpas e um colchão inflável dos meus colegas do lado de fora, embora parte de um pacote tenha sido comido pelos policiais que prometeram entregá-lo.

Zelaya soube que a foto que eu fiz dele dormindo estava sendo publicada no mundo todo, e me chamou. Elogiou a foto, mas discordamos sobre como autoridades públicas podem ser fotografadas e sobre o valor documental das imagens.

Duas semanas depois do início do impasse, desenvolvemos novas rotinas para ter acesso a alimentos, água e até ao banheiro.

Zelaya, sua família e seus amigos mais íntimos têm mais confortos, mas há apenas dois chuveiros para as outras 70 pessoas dentro da embaixada.

Agora recebemos comida entregue por amigos do lado de fora, mas isso pode ser caótico. Fabriquei uma colher a partir de um copo plástico, e pago a um seguidor de Zelaya para lavar minhas roupas.

Os simpatizantes comem qualquer coisa que a ONU mandar. Zelaya come sua própria comida, e eu como a comida da Reuters. Invejam-nos pelos colchões de ar.

Ao final de cada dia, recebo um telefonema. Minha esposa diz: “Nosso filho está bem, te vemos em breve”.

Quarta-feira, 7 de Outubro de 2009