sexta-feira, 17 de julho de 2015

Bourbon Paraty Festival ou O diabo na carne de Miss Jones

Meio do ano chegando, comecei a receber informações sobre a FLIP, o maior e mais conhecido evento literário do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil. Acabei não indo, depois de alguns anos comparecendo sempre, mas não fiquei chateado. Isso porque em recentemente outro evento me fez visitar a cidade: o Bourbon Paraty Festival, dedicado à música, em especial o blues, o soul e o jazz.

Na verdade, o que me fez viajar quatro horas de carro para Paraty numa sexta-feira de maio foi apenas uma atração em especial: a grande estrela da soul music, miss Sharon Jones.

O Bourbon costuma espalhar suas atrações por palcos e ruas da cidade, em especial seu belíssimo centro histórico. Há o palco da Matriz, o maior de todos e responsável pelas mais esperadas atrações. Ha também o palco Santa Rita, em frente à igreja de Santa Rita e que recebia as atrações da tarde. E, last but not least, as deliciosas atrações de rua, como a Orleans Street Jazz, de São Paulo, que costuma atrair sempre um grande número de pessoas com seu som inspirado no jazz tradicional de Nova Orleans. Bem, não tão tradicional assim: os músicos paulistas levantaram a galera mesmo com sucessos pop de Tim Maia e Jorge Ben Jor, adaptados ao som do jazz. Uma delícia de ouvir.

As atrações são várias e muitas no mesmo horário, o que faz o fã de música ter que se decidir ali mesmo, na mesma hora, qual estilo de som ouvir e presenciar. Perdi Leo Gandelman e Torcuato Mariano no sábado á tarde, mas conferi meu amigo Jefferson Gonçalves, um dos melhores gaitistas de blues do Brasil - e o One Man Band Vasco Faé, músico que toca sozinho, nas ruas, bumbo, gaita, guitarra e ainda canta! Muito bom.

As atrações do Palco Matriz estiveram dentro do esperado. O guitarrista Mike Stern mostrou não ter sido por acaso que acompanhou monstros como Miles Davis. Muito simpático, levantou a galera com clássicos de Jimi Hendrix e músicas de sua safra. Destaque para o saxofonista gordinho Skinny (magrinho, em inglês). ou seja, boa música, simpatia e ironia nas doses certas. A sexta encerrou com as charmosas cantoras do Cluster Sisters, meninas que já haviam chamado a atenção na primeira edição do programa Superstar, da Globo, ao cantar um jazz inspirado no swing das big bands dos anos 30 e 40 do século passado.  

Mas o melhor ainda estava por vir...e chegaria no sábado à noite, após uma chuva intensa em Paraty: a ex-carcereira e talvez a maior cantora de soul da atualidade, miss Sharon Jones.

Quem achou que a galera se dispersaria após a chuva intensa, se enganou. Parecia que todo o sul fluminense estava naquela noite em Paraty. Encontramos com meu irmão e esposa, que moram em Angra, e a todo momento um deles apontava um conhecido...de Angra, cidade que fica a 1h30 de Paraty. O Palco Matriz ficou pequeno para receber tanta gente. Para chegar ao local da plateia, tive que desdobrar esforços e escapar de diversos empurrões e cotoveladas. Nada que não fosse recompensado pelo calor que emanou do palco após a entrada de Sharon.



O show começa com as duas ótimas backing vocals da cantora esquentando a plateia. Elas cantam acompanhadas dos Dap-Kings, a banda de apoio de Sharon Jones, só com músicos excelentes de blues e soul. Após três números, entra Sharon, de vestido azul, colar e sandálias de salto, os cabelos ainda curtos após o tratamento de quimioterapia realizado em 2014, que a livrou de um câncer. Com apenas dois minutos no palco ela já mostra a todos - eu já sabia - que valera a pena ter ido à Paraty.

No palco, Sharon é uma força da natureza. Ela não apenas canta muito bem, mas também dança vários números ao ritmo dos Dap-Kings. Em certo momento, Sharon começa a cantar um número mais acelerado. O público se anima. Ela então tira as sandálias e, descalça, dança como se estivesse com o diabo no corpo. Delírio na plateia.  Por mais duas vezes ela repetiria o gesto, sempre levando todos nós, que espremidos porém felizes, sentíamos que aquele vulcão no palco aos poucos nos arrebatava.

Em certo momento, mas calmo, Sharon começa a apresentar um por um os excelentes músicos dos Dap Kings, com direito a um solinho de cada um em seu instrumento. O baixista, que já anunciara a entrada de Sharon no palco e espécie de líder dos músicos, faz um gesto crítico, "mas pra quê?". A cantora olha-o rapidamente, faz um gesto de "aqui mando eu" e continua a apresentar os músicos. Apenas o momento para logo depois nos arrebatar novamente com seus números.

"I learn the hard way" é o nome de um dos sucessos de Sharon, e poderia funcionar bem como "cartão de visitas" da cantora. Nada foi fácil para esta diva negra que trabalhou em presídios, atingiu o sucesso tardiamente, teve um câncer quando suas músicas ameaçavam estourar, venceu a doença e volta agora aos palcos esfuziante e cantando como nunca. Um dia antes de viajar para Paraty, Sharon fez show no palco do Vivo Rio, no Aterro do Flamengo. Ao final, convocou as mulheres da plateia para subirem no palco e dançarem um sucesso de outra grande cantora: Tina Turner. Não foram poucos que se embriagaram com a performance da cantora. Na edição daquela semana do Ronca Ronca, Maurício Valladares, celebrava a espantosa performance de palco da cantora.

Pra quem duvida, uma história contada pela própria cantora, no Jornal da Globo da semana anterior a sua vinda ao Brasil. Certa vez, quando trabalhava num presídio repleto de prisioneiros perigosos, um homem perguntou-a o que ela fazia ali, naquele antro de marginais. "Sou cantora", respondeu. Ele então pediu que Sharon cantasse. Ali mesmo, na frente de um grupo grande criminosos, Sharon entoou um velho sucesso de Whitney Houston, "I will always love you". Aparentemente, sua performance na cadeia agradou. Um mês depois, quando uma rebelião implodiu e guardas foram feitos de reféns, o mesmo homem que a perguntara porque estava ali, não deixou que nada acontecesse com ela.

Fez bem. Se Sharon já entusiasmara um grupo de criminosos cantando a capella dentro de uma cadeia, imagine o que ela não é capaz de fazer num palco, com um microfone e uma ótima banda por trás. Alguns dos maiores cantores da chamada soul music, como Ray Charles, Sam Cooke e Aretha Franklin, souberam dosar libidinosamente o cantar gospel aprendido em igrejas negras dos Estados Unidos com os apelos profanos dos amores arrebatados, que exalavam luxúria em letras de forte conotação sexual, Sharon Jones é uma cantora que consegue juntar os dois mundos. Quando canta uma canção de amor, lembra uma diva negra com uma aura impenetrável. Quando tira as sandálias e, com os pés descalços, começa a se retorcer e dançar compulsivamente, liberta os demônios que uma vida difícil lhe trouxeram