sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Janeiro de 1985: 30 anos do Rock in Rio. Eu estava lá

Julho de 1984. Estou em casa folheando o JB quando leio na coluna do Zózimo uma notinha que me chamaria a atenção. Dizia mais ou menos assim:  "O empresário Roberto Medina, que já trouxe ao Brasil Frank Sinatra, prepara para janeiro do ano que vem um grande festival de rock no Rio de Janeiro. Grandes bandas estão sendo contatadas". Foi ali, pela primeira vez que eu ouvi falar do que viria a ser o Rock in Rio. Será mesmo?, pensei. A coluna do Zózimo era fértil em dar furos na concorrência, mas imaginar um "grande festival de rock" no Brasil, numa época em que shows internacionais eram raros (tivemos antes apenas alguns no Maracanãzinho, todos com aquela acústica péssima) só podia ser um sonho. Não me lembro se Zózimo antecipara o local - um imenso descampado em Jacarepaguá que nos dias de chuva, em especial nos dias reservados ao heavy metal, se tornaria um lamaçal - mas algumas semanas depois, a grande imprensa revelava o que o colunista antecipara. O Rock in Rio, de fato, iria acontecer.

Em janeiro de 1985, eu tinha 15 anos. Ia começar a cursar o segundo grau (naquela época não falávamos "ensino médio") e, pela primeira vez, eu iria a um grande festival de rock. Estava com meu irmão mais velho, um primo e amigos. Lembro que o percurso era insano: pegamos dois ônibus que totalizaram algumas horas para cruzar a cidade de Ramos até a longínqua "cidade do rock" (se hoje a Barra ainda é longe, imagine em 1985, sem as Linhas Amarela e Vermelha). Nada, porém, tirava nosso entusiamo. Era o primeiro dia e eu estava indo ver finalmente o Queen e o Iron Maiden ao vivo. Ainda era difícil de acreditar. Estar no Rock in Rio, naquele começo de ano, era como se eu estivesse recebendo um passaporte para a maturidade.

Quem conheceu apenas as últimas edições do festival, transformado num grande parte temático cheio de atrações como tirolesa, roda gigante, salão de beleza (!) e tudo o mais, onde "a música é só um detalhe", como disse Roberto Medina em uma entrevista ao Globo, não imagina como foi aquela primeira edição. Apesar do local imenso, a infra-estrutura era precária. A cerveja era a famigerada Malt 90, e estava sempre quente. Conseguir comprar um hambúrguer era uma luta árdua.Os banheiros logo ficaram imundos. O belo gramado, depois de alguns dias, virou lama. Mas relevávamos tudo. Queríamos mesmo era curtir o rock. E os shows não decepcionaram.
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Eu fui em três dias: no primeiro, dia 11; no domingo, 13,; e no sábado seguinte, dia 19.  Ney Matogrosso abriu o festival com um ótimo show, mas logo depois foi triste ver a galera metaleira (que eram muitos, muitos mesmo) vaiando Erasmo Carlos logo depois. O show do Iron Maiden foi sensacional. E o Queen, fechando a noite, foi arrebatador. A banda estava em uma de suas melhores fases e foi arrepiante cantar junto com milhares de pessoas o clássico "Love of my life", Ao fim da extenuante noite, lembro das pessoas cansadas, mas felizes, indo pegar os ônibus. Na volta pra casa, havia gente dormindo até de pé nos coletivos lotados.



No dia 13 curti bastante as atrações nacionais. Paralamas, Lulu Santos e a Blitz fizeram três ótimos shows, com destaque para a falta de cenário dos Paralamas, que improvisaram uns enfeites do camarim no palco - cenário simples, show excelente. Mas o grande destaque desta noite foi mesmo Rod Stewart, que fez um dos melhores show de toda a história do festival. Se no Queen eu estava tão espremido na multidão que mal conseguia me mexer, no show de Rod deu pra dançar o tempo todo, e nem a chuva que caiu no meio da apresentação diminuiu a animação da galera. Ainda me lembro de dançar sem parar ao som do clássico de Sam Cooke, "Twisting the night away" e vários hits de Rod, que pôs a plateia no bolso.



No sábado seguinte, dia destinado às bandas de heavy metal, a chuva caiu forte, Mas a galera não desanimou. Aliás, que eu me lembre, nenhuma das demais edições do festival conseguiu reunir um dia tão bom. Ver Whitesnake, Scorpions, Ozzy Osbourne e o AC/DC foi realmente uma experiência única. Temendo nova vaia a Erasmo Carlos, a produção o tirou deste dia, mas manteve Pepeu Gomes e Baby Consuelo, que encararam a intolerância quase fundamentalista dos fãs de heavy metal com um showzaço. Antes que os fãs do rock pesado começassem a vaiar, Pepeu Gomes deu um solo a la Jimi Hendrix, Depois, junto com Baby, levaram um versão arrasa-quarteirão do clássico "Brasileirinho"', deixando os radicais de boca aberta. Recentemente vi numa entrevista para a TV Baby contando que contratou um grupo de seguranças para impedir que os outros seguranças do festival desligassem o som ou mandassem terminar o show antes dos 40 minutos previstos.A tática, pelo visto, deu certo.

Sim estive em apenas três noites, mas foram três noites que jamais vou esquecer. Depois do primeiro Rock in Rio, finalmente o Brasil começou a receber mais astros do rock internacional. Os grandes grupos haviam descoberto o Brasil. E o festival fora o responsável.    




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Somos todos Charlie - humor x fanatismo

O atentado terrorista contra a redação do jornal francês Charlie Hebdo me fez lembrar de uma aula que dei na faculdade de comunicação há pouco mais de dois anos. A disciplina era Cultura das Mídias e o tema da aula, a cultura do politicamente correto. Em determinado momento, a fim de explicar a influência do politicamente correto no humor, recorri a um vídeo do Felipe Neto e seu "Não faz sentido". Na época Felipe já tinha um bom séquito de fãs na web, com seus ácidos comentários no Youtube sobre vários temas. Assim, boa parte da turma se empolgou com o que veria a seguir.

O vídeo começa e Felipe logo avisa que fez uma seleção piadas de humor "refinado", com "compromisso social", que "não ofendem ninguém". Pausa. Entra uma música clássica de fundo e Felipe fica um minuto inteiro sem falar absolutamente nada. Ou tentando falar, mas sem encontrar algo a dizer. Na sala de aula, observo alunos perplexos que esperam a piada, que não vem em momento algum. Ao final do vídeo, Felipe sai de cena e entra a legenda: "Nenhuma minoria foi ofendida nestes 60 segundos",





Curiosamente, acompanhando a repercussão no Brasil sobre a tragédia francesa, encontrei um artigo muito bom de Allan Sieber (escrito especialmente para o blog do Andre Barcinski), sobre um debate que tomou a França há alguns anos, sobre os limites do humor. Na época, o Charlie Hebdo chegou às bancas de todo o país com a manchete "Um jornal responsável",  Segundo Sieber, "dentro só tinha as legendas dos cartuns, o resto era TUDO branco. Nunca ninguém teve a manha de fazer um jornal mais chapa branca que esse".




Poderíamos dizer que os cartunistas do Charlie Hebdo sabiam que não existe essa história de "humor responsável". A corrente ideológica do "politicamente correto" surgiu nos EUA durante os anos 1980 e se alastrou como uma praga em boa parte do mundo ocidental. De repente nos vimos obrigados a rever nossos conceitos sobre toda forma de minorias que por séculos foram difamadas, exploradas, humilhadas, sacaneadas, ironizadas, tornando-se, em grande parte, alvo de piadas, do humor que é parte da sociedade. Claro que a ideia inicial era boa ( quantas vezes não ouvimos a expressão "não judia dele não", sem atentar que na verdade estávamos denegrindo os judeus?), mas aos poucos a corrente se transformou numa grande patrulha transformada em correção política, e um grupo que foi muito agredido foi justamente o dos humoristas. De repente não era bom fazer piada nem com anões, que se transformaram dentro do linguajar politicamente correto em "verticalmente desfavorecidos"). Lendo os jornais a respeito das mortes dos cartunistas franceses, li algumas opiniões de leitores e até de intelectuais convidados a se expressarem dizendo que deveria haver um limite no humor. Alguns chegaram mesmo a dizer os cartunistas teriam exagerado, que aqui no Brasil ninguém gostaria de ver "os dogmas do catolicismo sendo ridicularizados"

(Bem, quanto a este último comentário, devo dizer que o autor está bastante desinformado. Sugiro a ele que entre no canal do "Porta do fundos" do youtube para ver alguns vídeos hilários sobre Jesus e os "dogmas do catolicismo". A despeito de alguns comentários indignados no próprio Youtube, até agora nenhum dos vídeos do grupo a satirizar o cristianismo, Deus ou Jesus foi proibido).

Quando o politicamente correto se mistura com o radicalismo, temos o fundamentalismo ou o fanatismo religioso, que acredita não haver espaço para a tolerância. Para um fanático, como estes que mataram os cartunistas franceses, não se pensa na alternativa mais civilizada que seria simplesmente ignorar o jornal. É preciso também assassinar aqueles que "profanaram" sua religião.

O grande escritor israelense Amós Oz escreveu em 2004 um pequeno grande livro chamado justamente "Contra o fanatismo".Eis um pequeno trecho em que fala sobre o Oriente Médio, mas que poderia muito bem definir o fanatismo no mundo inteiro::

"A crise atual no mundo - no Oriente Médio, em Israel e na Plestina - não diz respeito, de jeito algum, à mentalidade dos árabes, como querem alguns racistas.Diz respeito à luta antiga entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerância. O 11 de setembro não tem a ver nem mesmo com a questão de se a América é boa ou má, se o capitalismo é ameaçador ou transparente, se a globalização deveria cessar ou não. Diz respeito, isto sim, à reivindicação típica dos fanáticos: se julgo algo mau, elimino-o, junto com seus vizinhos. O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o  Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo,  O fanatismo é, infelizmente, um componente onipresente da natureza humana, um gene do mal, se quiserem chamá-lo desta forma. Pessoas que explodem clínicas de aborto nos Estados Unidos, que queimam mesquitas e sinagogas aqui ou na Alemanha, diferem de Bin Laden apenas em escala, mas não na natureza de seus crimes,"

O pior que poderia acontecer com relação ao assassinato dos jornalistas franceses seria considerar aquilo como algo isolado. De fato, cheguei a ler uma postagem do Facebook onde um amigo escreveu "viva o Brasil, que está longe de ter massacres iguais ao que aconteceu na França".  Bem, devemos tomar cuidado com afirmações como essa. O Brasil ainda é um dos países que mais matam jornalistas. Ainda é um local em que pessoas pobres são diariamente assassinadas nas grandes favelas. Ainda é um país onde um universitário é assassinado na entrada da faculdade por motivos banais. Em que evangélicos fundamentalistas não escondem nas redes sociais sua satisfação e ainda ameaçam aqueles que fazem humor com passagens da Bíblia. São todos casos de intolerância e desprezo à vida humana, mas que não tiveram a mesma repercussão que as mortes francesas.  

A solidariedade mundial mostrada nos últimos dias mostra que devemos considerar o crime ao jornal francês como um crime contra todos nós. Contra a civilização, a liberdade de expressão e a tolerância humana. Talvez Voltaire não imaginasse o quanto ele fez pela liberdade de expressão ao dizer para um crítico: "não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de fazê-lo".

Um dos assassinos dos cartunistas franceses chegou a dizer que não se importava em virar um mártir da causa contra o Islã. Enganou-se. A solidariedade mundial que se seguiu à tragédia francesa mostra que na verdade eles conseguiram criar milhares de adeptos á causa da liberdade de expressão. Na semana que vem, um número especial de Charlie Hebdo - que se encontrava em crise financeira - sairá com a tiragem inédita de 1 milhão de exemplares, com boa parte da renda destinada ás famílias das vítimas. Ou seja, Charlie vive.

Que o humor não morra jamais. Je suis Charlie. Somos todos Charlie.






sábado, 3 de janeiro de 2015

O que vi, ouvi e li de bom em 2014 – Parte 2


Continuando a postagem anterior, sigo em frente com um pequeno apanhado sobre o que mais curti em matéria de cultura em 2014. Na música, pra variar, pouco tempo pra escutar tanta coisa boa. Sim, pois quem gosta de música hoje vive o paradoxo de ver um mercado fonográfico preso a fórmulas ainda ligadas ao mainstream (é curioso perceber como uma produção musical tão diversificada como a brasileira seja refletida nas rádios a partir do monopólio atual de um ou dois ritmos, como o sertanejo universitário e o pagode romântico), enquanto a indústria, ainda em crise com os downloads ilegais, segue aos poucos apostando no ainda incerto meio digital. Há hoje opções que vão muito além do rádio e TV, como o iTunes, as rádios de streaming musical, o youtube etc. É só saber procurar e ter olhos e ouvidos bem abertos.

Quem procurar, encontrará na web ótimos programas. podcasts de sites em que muita boa música é mostrada., Destaco, como sempre, o Ronca Ronca de Maurício Valladares, há mais de 30 anos seguindo no rádio (ou melhor, em diversas rádios) mostrando o melhor da produção musical pop do planeta, sem preconceitos. Afinal, onde mais escutar novidades da música africana, gemas do pop latino, pérolas do rock das antigas e artistas que acabaram de lançar seu último disco, tudo no mesmo programa? Difícil achar. E ainda apostei com prazer na Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, com ótimos podcasts de grandes artistas. Só a pesquisa para o programa sobre Cole Porte, apresentado por João Máximo, valeria a ouvida. Pra quem curte rock e boas histórias, a série sobre o rock brasileiro apresentada por Joaquim Ferreira dos Santos e Arthur Dapieve, referências para este blog, é imperdível Enjoy it, may friends!

Se a música de 2013 foi "Get Lucky", do Daft Punk, creio não restar dúvidas que nenhuma outra foi tão tocada, repetida, assimilada, copiada como "Happy", de Pharrell Williams. Nota-se que uma música virou um clássico quando ela extrapola os limites da esfera estritamente musical. "Happy" foi parar em comerciais de todos os tipos e até em mensagem de fim de ano de televisão foi copiada. Talvez, em tempos de tanto ódio nas redes sociais e culto ao individualismo via selfies, a canção de Williams tenha funcionado como um bem-vindo bálsamo de alegria. E nos estertores de 2013, encontro outra música tão irresistível quanto "Happy". Conferindo o blog de André Forastieri (um dos que acompanho sempre, junto ao seu xará André Barcinski), leio e ouço o que ele clama como a música do verão: "Uptown funk", de Mark Ronson e Bruno Mars. Difícil ouvir parado. Aliás, não troco um Bruno Mars por dez cantores/as pseudo-rebeldes que gostam de aparecer e que são insistentemente convidados para tovcar no brasil. Alô Medina, queremos Bruno Mars no Rock in Rio já! 


Quanto aos álbuns lançados, houve tempo (pouco, é claro) para curtir "Vista pro mar", do capixaba Silva, uma das boas surpresas do pop nacional. Mas a melhor de todas talvez tenha sido o álbum de estreia da Banda do Mar, projeto de Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e o português Fred. Foi um ano também em que grandes cantoras lançaram ótimos álbuns. As rádios quase não tocaram o segundo e melhor álbum de Alice Caymmi, o sensacional "Rainha dos raios", e também o dilacerante "Encarnado", de Juçara Marçal, cantora do Metá Metá. Quem? Ainda não ouviu? Pois corra para o youtube e confira o quanto você anda perdendo...


Por fim, os livros. Na área de não-ficção, li o excelente "A informação", de James Gleick (tb com atraso, pois o livro foi lançado em 2013). Uma história da busca pela comunicação e informação humanam dos tambores africanos aos faróis europeus, da invenção do transistor à teoria matemática da informação. Das primeiras máquinas de computar dados aos modernos computadores. Não por acaso, está já na minha lista de livros a serem lidos em 2014 o elogiado "Os inovadores", de Walter Isaacson, que acredito complementar a obra de Gleick - além, de é claro, me dar subsídios para as aulas de teorias de comunicação, rs.   

Na ficção, dois livros pouco comentados nos cadernos de cultura, mas que descobri através de dicas no Estúdio I, da Globonews (Alô, \Felipe Pena, obrigado!) e na lista de recomendados da Vea. O primeiro, "Oeste - a guerra do jogo do bicho", é um romance de ação incessante (coisa pouco comum na literatura brasileira) sobre a ascenção e queda de vários bicheiros importantes do Rio de Janeiro. Passado em grande parte na zona oeste da cidade, quem ouviu notícias sobre o império dos antigos "capos" do bicho, como Castor de Andrade, e Antonio Português va lembrar na hora de algumas passagens marcantes. Mais que puro entretenimento, o livro se detém na chegada ao negócio da contravenção das famosa máquinas caça-niqueis - vá em qualquer padaria carioca e veja se não há alguma no cantinho com algum viciado jogando. Ou seja, diverte e instrui. 



E, por último, aquele que ainda não acabei de ler, mas mesmo assim já recomendo. O delicioso "Está de  volta". O autor, o alemão Timur Vermes, parte de uma premissa inacreditável: o que aconteceria se, em pleno século XXI, Adolf Hitler acordasse, aos 56 anos (idade em que teria cometido suicídio) os arredores de Berlin, na Alemanha? O que ele faria? O resultado é uma ficção da melhor qualidade, bastante irônica e mesmo com toques de humor negro, que faz uma bela crítica ao culto ao entretenimento dos dias de hoje e a obsessão pelo marketing na política, algo que nem  fuhrer conseguiria imaginar em que se tornaria. 



Só o capítulo em que o redivivo Hitler se confronta com a programação atual da TV, repleta de programas de culinária (sim, até na Alemanha a filosofia foi trocada por um belo risoto) é hilária. Como este blog busca em grande parte selecionar temas ligados à esfera da Comunicação, fica a dica a todos.

Feliz 2014!                 
    

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O que vi, ouvi e li de bom em 2014 - parte 1

Foi um ano que passou muito rápido, mas com vários momentos marcantes, Um ano de Copa do Mundo em que as torcidas do Brasil e do mundo inteiro deram show, enquanto nosso time dava vexame contra a Alemanha. Um ano de eleições para presidente em que preponderou o baixo nível das acusações entre candidatos na televisão e seus eleitores nas redes sociais, estas novas esferas públicas onde qualquer um pode publicar opiniões. Os ânimos estiveram exaltados e vários "amigos" foram jogados pra escanteio no Facebook, apenas porque declararam seu voto em Dilma ou Aécio. Houve a novidade dos debates na televisão onde a figura do jornalista foi devidamente defenestrada - uma estratégia malandra das TVs, quando o embate entre adversários ganhou em drama mas perdeu em conteúdo. O resultado foi uma ida às urnas com a sociedade hiperpolarizada e sem conhecer de fato as propostas dos dois principais candidatos.

Mas deixemos as eleições para trás e pensemos na nossa sociedade digitalizada. Houve um momento nas copas anteriores em que era fácil encontrar um identificar um torcedor japonês: era aquele que estava tirando várias fotos dentro dos estádios, sem se preocupar como rolo de negativos. Negativos?! Isso ficou devidamente no passado com as câmeras digitais e os smartphones com câmeras cada vez melhores. Logo surgiriam os autorretratos ou "selfies" (a palavra do ano de 2013, segundo o dicionário Oxford). Tira-se foto de tudo, da nova roupa comprada para a festinha até de pratos com comida em restaurantes (argh!!). Viramos todos japoneses? Ou foi a sociedade que ficou mais egocêntrica? Há indícios para apostar na segunda hipótese.

2014 foi, entre tantos fatos relevantes e irrelevantes, o ano do aparecimento no Brasil, ainda na Copa do Mundo, do famigerado "pau de selfie", ou "Go Pobre" (sutil adaptação da caríssima câmera de selfies Go Pro). O pau de selfie (um bastão para fazer autorretatos, que pode chegar a até 1m) foi visto pela primeira vez como uma bizarrice nas arquibancadas dos estádios (perdão, arenas) brasileiros da Copa, trazidos por integrantes de torcidas estrangeiras. Muitos pensaram ser algo restrito á Copa, como as vuvuzelas da África do Sul, mas estavam enganados. Na semana passada, vi na praia em Arraial do Cabo, aqui no Rio, pelo menos duas pessoas usando o objeto. Entrei na internet intrigado e lá estava a manchete: "Às vésperas  do Natal, procura por 'pau de selfie' aumenta".  Isso diz muito de uma sociedade cada vez mais vítima do narcisismo eletrônico, onde a popularidade é marcada pelo número de "curtidas" em redes sociais. Sinal dos tempos.




Enquanto os selfies proliferam, eu aqui aproveito para compartilhar com vocês um pouco do que assisti, li e ouvi de bom em 2014. Claro que o tempo dividido pelo trabalho entre duas faculdades de Comunicação não deixou que eu aproveitasse ao máximo as opções culturais. Segue abaixo,portanto, uma lista curta e bastante pessoal, apenas para alimentar este blog no qual tão pouco publiquei nos últimos meses.

No cinema, o ano começou bem com o sensacional "O lobo de Wall Street", de Martins Scorsese, com uma atuação espetacular de Leonardo DiCaprio. Tivesse ele uma meia hora a menos, seria uma obra-prima. Ainda no primeiro semestre, o belo e pungente "Ela", de Spíke Jonze, com Joaquin Phoenix, a história de um homem solitário que se apaixona por um sistema operacional de computador com a voz de Scarlett Johanssen. Uma bela reflexão sobre a dependência tecnológica e o amor em tempos digitais.




Mais para o fim do ano, dois grandes filmes. Primeiro, "Boyhood - da infância à juventude", no qual o diretor Richard Linklater promove uma experiência única na história do cinema: acompanhar a vida de um menino dos 6 aos 18 anos. Mais que o prazer de acompanhar uma filmagem com a mesma equipe que levou 12 anos (coisa rara em tempos onde tudo é efêmero) o filme ainda discute a passagem do tempo e como ele nos afeta. E entre aqueles filmes que suscitaram discussões na saída dos cinemas está o genial 'Relatos selvagcens", filme argentino em episódios sobre indivíduos comuns confrontados com situações alarmantes ou até desesperadoras. Em geral, contamos até 10 e seguimos em frente. Em, "Relatos", os personagens enfrentam o inesperado, com consequências atordoantes.

Na televisão, duas ótimas minisséries na Globo: "Amores roubados" e "Dupla identidade". E uma ótima surpresa, o programa de humor "Tá no ar: a TV na TV", uma ideia da dupla Marcius Melhen e Marcelo Adnet em que o tema mais satirizado é a própria TV, seus programas e formatos. Uma ótima curtição metalinguística, com quadros que fizeram sucesso e que teve o mérito de finalmente mostrar o talento de Adnet na Globo.



No teatro, ótimas peças em reapresentações, Finalmente consegui assistir a "Arte", da israelense Yasmina Reza (mesma autora de "O deus da carnificina"), e dois musicais inspirados em grandes nomes da cultura e comunicação brasileiras: "Elis, a musical" e "Chacrinha". Este último, principalmente no segundo ato, quando a peça vira um show de auditório do Chacrinha, é uma das mais divertidas peças a que assisti nos últimos tempos, capturando bem o espírito anárquico e debochado do velho guerreiro.

Mas não posso esquecer do espetáculo em que estive com meu filho, na longínqua Cidade das Artes: "Os saltimbancos trapalhões", Pensando bem, não tinha como dar errado: a competência técnica da dupla Muller e Botelho, os atores, dançarinos e cantores escolhidos a dedo; as músicas de Chico Buarque que marcaram toda uma geração; e o talento de Renato Aragão pela primeira vez no palco de um teatro, acompanhado por Dedé Santana. Não foram poucos os adultos com lágrimas nos olhos nas cenas em que Renato estava presente.e roubando a cena. Ao final, a constatação de que o teatro musical brasileiro se encontra hoje entre os melhores do mundo.



Amanhã, segue o que curti de bom na música e na literatura.