quinta-feira, 19 de março de 2015

Samuel Fuller e o cinema: "Em uma palavra: emoção"

Difícil imaginar cena de abertura tão impactante. Uma mulher, num acesso de fúria, entra numa casa agredindo violentamente um homem com golpes desferidos por um sapato feminino. O homem está bêbado e suas tentativas de reagir são inúteis. A certa altura, ele puxa o cabelo da mulher e descobrimos que ela é totalmente careca. Ela não se inibe e continua golpeando o homem. Ao fundo, um som de jazz bem acelerado. O homem vai ao chão. A mulher, então, arranca dos bolsos dele uma quantia de dólares e diz ao homem que só vai levar o que ele a deve. Pouco depois, o homem está inerte no chão. A mulher prosta-se em frente a um espelho, recoloca a peruca e começa a se realinhar. Aos poucos, começam a surgir os créditos do filme. O título: "The naked kiss". Seu autor: Samuel Fuller.




No Brasil, "The naked kiss" ganhou o título "O beijo amargo". O filme é de 1964 e consta do lançamento "A arte de Samuel Fuller", uma caixa de quatro DVDs da Versátil, Além de "O beijo amargo", há também o cultuado "Paixões que alucinam" ("Shock corridor"), além dos menos conhecidos "O quimono escarlate" e "Casa de bambu". E um documentário sobre Fuller com depoimentos de gente como Tarantino e Martin Scorsese.

Fuller começou sua carreira como jornalista, bem cedo, aos 17 anos. Escreveu novelas pulp e mais tarde, lutou na Segunda Guerra Mundial pelo exército americano, conflito que o marcaria e que mais tarde seria mostrado em obras como "Agonia e Glória". Começou no cinema como roteirista, até estrear na direção em 1949, com "Eu matei Jesse James". Em 1982, realizou um dos maiores filmes sobre a questão do racismo, "Cão branco", a história de um cão que é adestrado pelo seu dono racista a odiar negros. O filme, apesar de ótimo, foi rechaçado pela própria produtora, Paramount, com medo de seu potencial polêmico, e lançado de maneira independente, arrecadando muito pouco. Este foi um dos motivos de Fuller sair dos EUA e terminar sua carreira na Europa, para onde se mudou nos anos 80.Seu último filme seria "Uma rua sem volta", em 1989. Fuller morreria em outubro de 1997, aos 85 anos.

Mas por que Fuller é hoje um cineasta cultuado por não só fãs de cinema mas diretores famosos? Talvez seja sua direção criativa e impactante, além da atração pela vida real, sem artifícios hollywoodianos para vender emoções baratas a uma plateia acostumada com o escapismo insosso de tantos filmes. Como em "O beijo amargo", que retrata a trajetória de uma ex-prostituta e stripper, que, para fugir do seu passado, viaja para uma cidadezinha onde ninguém a conhece.

O local é, à primeira vista, uma idílica e tranquila cidade repleta de indivíduos típicos das pequenas cidades americanas nos anos 1960. Afáveis, generosos, e dispostos a ajudá-la. O local perfeito, pensa Kelly, a ex-prostituta interpretada de forma magistral por Constance Towers.

Mas nem tudo ali é perfeito. Aos poucos, Kelly, que consegue emprego como enfermeira numa clínica de crianças com deficiência nas pernas, descobrirá que o futuro tranquilo que almejava não seria tão fácil de encontrar. As pessoas que pareciam tão bem dispostas a aceitá-la aos poucos começam a demonstrar a inveja, ciúme, insegurança e violência. A pequena cidade, enfim, revela-se como mais um microcosmo de uma sociedade irremediavelmente humana. Um filme, enfim, adulto como poucos hoje em dia.

Uma das frases mais famosas de Samuel Fuller foi quando ele buscou definir seu ofício:

"Um filme é um campo de batalha. É amor, ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção"