terça-feira, 28 de abril de 2009

A última loja de discos

Minha loja chama-se Championship Vinyl. Vendo punk, blues, soul e R&B, um pouco de ska, algum material independente, um pouco de pop dos anos sessenta - tudo para o colecionador de discos exigente, como reza o ironicamente antiquado letreiro na vitrine. Ficamos numa rua calma de Holloway, cuidadosamente localizada para atrair o mínimo de atenção de fregueses casuais; não há razão alguma para se vir aqui, a não ser que você more aqui, e as pessoas que moram aqui não parecem terrivelmente interessadas em meu Stiff Little Fingers com selo branco (vinte cinco paus para você - paguei dezessete por ele em 1986) ou na minha reprodução em mono de Blonde on Blonde.
"Alta fidelidade", Nick Hornby


Na série "Life on Mars", versão americana inspírada no seriado original inglês (e com a mesma canção tema de David Bowie), toda quinta-feira no canal a cabo FX, um policial de 2008 é atropelado e, quando acorda, vai parar no ano de 1973. Confuso, desnorteado, ele vai agora procurar saber como foi parar ali e como fazer para voltar ao futuro, ao mesmo tempo em que tenta se adaptar a uma sociedade sem CDs e DVDs, sem computadores pessoais, sem telefones celulares... Logo no primeiro capítulo, ao buscar uma pista sobre um criminoso, nosso herói acaba entrando numa loja de discos de vinil, com centenas de exemplares, além de cabines para a escuta dos "long-playings". Maravilhado, ele diz a um colega policial que de onde ele vem lojas assim já não existem mais; e conclui, olhando para os LPs: "Tenho que me lembrar de levar alguns destes quando voltar".

Lembrei da cena ao ler semana passada, dia 18, uma notinha bem escondida no Segundo Caderno do jornal O Globo: naquele dia estaria sendo comemorado nos Estados Unidos o "Dia da Loja de Discos". E que, para marcar a data, o cantor e compositor Tom Waits estava lançando um disco (em vinil!). O compacto simples (nos Estados Unidos, single) fora gravado ao vivo no Fox Theatre, em Atlanta, em julho de 2008, e trazia duas músicas: "Lucinda" e "Ain't going down the well". Ainda segundo a nota, Tom Waits teria comentado o que achava da data: "As lojas de discos são um lugar mágico onde vou alimentar meus ouvidos. Não podemos deixar que elas acabem."



"Não podemos deixar que elas acabem". Sábias palavras, Tom. Apesar de possuir uma boa quantidade de músicas baixadas em MP3, confesso que sou um apaixonado pelos discos de vinil e até hoje os coleciono. Durante algum tempo, nos últimos anos, cheguei a pensar que as lojas pelas quais passei boa parte de minha adolescência e vida adulta iriam desaparecer - uma a uma elas foram sumindo, primeiro trocando os vinis por CDs; depois cedendo seu lugar para as grandes redes de departamentos, onde o vinil e o CD eram apenas alguns dos inúmeros produtos postos à venda. A lojinha da esquina, aquele lugar mágico onde eu ia alimentar meus ouvidos e experimentar novas sensações, não existia mais. Seria o fim?

Cada um de nós, apaixonados por música, sempre gostou de passar bons momentos dentro de uma boa loja de discos. Quem nunca deixou a namorada esperando e reclamando, enquanto pedia só mais um tempinho ali dentro, apenas para ouvir a última canção dos Smiths, o mais novo disco do Caetano, aquele disco fora de catálogo de David Bowie perdido no final de uma prateleira ou o caixote caríssimo de discos com gravações raras de Bob Dylan? Creio que todos temos, ou tivemos em algum momento de nossas vidas, aquela loja de discos de estimação, que era pra onde íamos quando sobrava algum dinheiro, pois estávamos sempre sem grana.

Minha loja de discos de estimação era perto de minha casa. Ficava na rua Uranos, na altura de Olaria, no subúrbio do Rio. Eu ficava ansioso por juntar uns trocados suficientes para ir lá. Numa época em que os CDs começavam a expulsar os discos de vinil das lojas, esta loja orgulhava-se de manter uma bela coleção de centenas de LPs. Ali eu encontrei pérolas como o primeiro disco da Banda Black Rio (que depois viraria item de colecionador nas feiras antenadas de Londres), além de clássicos de Neil Young, Creedence, Beach Boys, Buddy Holly, Billie Holiday e vários outros sons que fizeram parte de minha vida. Aos sábados de manhã um grupo de fãs idosos de rock n' roll se reunia ali para trocar ideias sobre música pop dos anos 50. Uma vez apareci por lá nesse dia, e acabei levando um LP de Jerry Lee Lewis depois de uma animadíssima conversa com os velhinhos roqueiros.

Um tarde dos anos 1990, não me lembro mais qual ano, passei em frente à loja num dia de semana. Ela estava fechada. Voltei na semana seguinte e tive a certeza - era o fim. Ela era um delicioso anacronismo em pleno subúrbio carioca, mas não resistira e fechara suas portas. Meu escape pelo delicioso mundo das sensações musicais daquela lojinha que se orgulhava de não chamar a atenção de ninguém que não fosse fã de música havia acabado.

Mas, que bom, não era o fim das lojas de discos. Elas estão voltando, aos poucos, bem lentamente. E a gravadora Deck Disk já anunciou que vai reabrir a última fábrica de vinis do brasil, em Belford Roxo. Parece que com a emergência das novas mídias, há espaço também para aquele objeto redondo, "preto com um buraco no meio" (como dizia Keith Richards a jornalistas que perguntavam como seria o próximo disco dos Stones) que nós, fetichistas do vinil, sempre curtimos. É mais ou menos como naquele filme do Woody Allen, "Igual a tudo na vida" em que a personagem de Christina Ricci seduz um rapaz dizendo mais ou menos que "não há como curtir uma gravação de Billie Holiday se não for num velho disco de vinil".

Por isso, a importância de um "Dia da loja de discos". E nos Estados Unidos, país que mais sofreu com os downloads de músicas na internet, que perdeu megalojas como a Tower Records (verdadeiro santuário dos fãs de música) e a Virgin Records de Nova York (esta transformada recentemente numa grande loja de roupas a preços módicos). Mas também o mesmo país em que só no ano passado mais de 2 milhões de discos de vinil foram vendidos. Apostando na onda dos produtos "vintage", artistas já lançam há algum tempo tiragens limitadas de seus discos em vinil, alguns contendo músicas não disponíveis no formato CD. Os fãs do formato agradecem.

Aqui no Brasil a notícia do "record store day", tirando alguns comentários em blogs e sites sobre música, como o da MTV, passou em brancas nuvens. Uma pena, mas é bom saber que ainda há lugares em que os discos resistem, seja num sebo como o Baratos da Ribeiro, seja na grande Modern Sound, a melhor loja do Rio e que continua de vento em popa. Estive em Belo Horizonte mês passado e fiquei deliciado com a ótima Disco Play, na rua Tupis, bem no Centro. E há muitas outras espalhadas em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Fortaleza etc.

De minha parte, enquanto existirem estas lojas, eu as continuarei frequentando. Mesmo que um dia eu entre na última loja de discos que sobrar, peça ao vendedor aquela cópia do "Sticky Fingers", dos Rolling Stones, com a capa original cujo design e charme original - com aquele fecho ecler de verdade - nenhum arquivo baixado na rede pode chegar perto, e reservarei alguns momentos para ir à cabine e deixar que a música satisfaça minha alma, minha mente, meu espírito.

terça-feira, 21 de abril de 2009

O incrível, o bizarro, o inesperado nos contos de Roald Dahl

Você não acharia estranho se um gato que cruzou seu caminho e lhe seguiu até sua casa demonstrasse uma estranha fixação em música clássica, a ponto de deixar suspeitas inusitadas? Pois leia um trecho desta história:

"O animal, que havia poucos segundos dormia tranquilamente sobre o sofá, sentava-se agora absolutamente ereto, muito tenso, o corpo todo tremendo, orelhas em pé e olhos arregalados, olhando fixamente para o piano.(...)Louisa levou as mãos ao teclado e começou, de novo, a tocar Vivaldi. Dessa vez o gato estava preparado, e o que aconteceu, a princípio, foi que seu corpo ficou ainda mais tenso. Mas, à medida que a música crescia e se acelerava, naquele ritmo excitante da introdução à fuga, um olhar estranho, quase de êxtase, começou a se apoderar do rosto da criatura. As orelhas, até então eriçadas para cima, recuaram lentamente, as pálpebras se fecharam, a cabeça inclinou-se para um lado, e, naquele momento, Louisa poderia jurar que o animal estava, de fato, deleitando-se com a peça."

Estranho, não? Poderíamos até dizer que se trata de algo bizarro, inacreditável até. Sim, pois são adjetivos afins que podem, a princípio, definir os contos do escritor Roald Dahl, pouco conhecido no Brasil, mas dono de uma imensa popularidade na Inglaterra, onde viveu até sua morte, em 1990. Dahl era um mestre em mostrar como o ser humano era capaz de levar a cabo as atitudes mais perturbadoras para conseguir seus objetivos. Mas não estamos falando de um escritor de literatura de "terror". Qualquer rótulo soaria apressado para definir este exímio contista, capaz de escrever histórias recheadas de humor e ironia. O trecho que você leu acima é parte integrante de um dos onze contos do livro "Beijo,", lançado pela Editora Barracuda em 2008.

Se consultarmos o verbete da Wikipedia sobre Dahl, poderemos constatar que a imaginação do escritor, nascido no País de gales e filho de noruegueses, "foi muito estimulada pelas histórias que sua mãe contava sobre os trolls, as míticas criaturas das lendas norueguesas". Ouvir histórias fantasiosas e recheadas de suspense é um hábito milenar do homem. Há centenas de anos atrás, ainda na Idade Média, bem antes da invenção da escrita, era comum que pessoas se reunissem à noite, ao redor da fogueira, para ouvir de alguém histórias em que o fantástico, o suspense e o inesperado predominavam. Na história da literatura, este período literário é conhecido como a fase oral. Os primeiros contos publicados inspiraram-se nestas histórias curtas, soturnas e instigantes, geralmente com uma passagem inesperada ao final. Em "Beijo,", Roald Dahl leva ao leitor uma desconcertante seleção de contos que nos lembram os primórdios do estilo. Suas histórias são tão sedutoras e misteriosas que nos dão a sensação de reviver os momentos em volta da fogueira.

O autor é mais conhecido por seus livros para crianças, em especial "Charlie e a fábrica de chocolates", que daria origem ao filme "A fantástica fábrica de chocolates", levado aos cinemas por duas vezes, a última em 2005 por Tim Burton, com Johnny Depp no papel de Willy Wonka, o dono da misteriosa fábrica a qual nunca ninguém era visto entrando e saindo. A primeira versão, de 1971, com Gene Wilder como Wonka, e roteirizada pelo próprio escritor, é hoje um cult movie dos cinéfilos brasileiros. Quem viu, até hoje não esquece da história encantadora, mas com alguns momentos bem perturbadores.

Já em "Beijo,", lançado originalmente em 1960, o público adulto é o prestigiado com onze contos intrigantes e muito bem escritos. Não procure aqui alguma "mensagem", "ideologia" ou a busca por um estilo linguístico que rompa com algum padrão. Dahl interessa-se apenas em contar uma boa história, seja ela fantasiosa - como o conto em que um homem desenvolve uma estranha fixação por abelhas, a ponto de tentar curar a filha recém-nascida e doente com geléia real e, aos olhos da mulher, ir ficando estranhamente parecido com o animal; ou demasiadamente humana, como em "O prazer do pastor", no qual um vendedor de móveis antigos faz-se passar por um pastor para ludibriar moradores do campo e comprar destes móveis caríssimos a preços irrisórios. O final deste conto, no qual a ganância do falso pastor cairá por terra de forma hilariante, é genial.

Alguns contos, mais macabros, poderiam estar perfeitamente entre aqueles selecionados por Alfred Hitchcock para sua famosa série de televisão "Suspense", como "A dona da pensão" e "Porco". Mas os melhores são mesmo aqueles em que o humor e a ironia do escritor são a deixa para vinganças pessoais de maridos traídos ("A sra. Bixby e o casaco do coronel"), mulheres aparentemente submissas ("William e Mary") e ladrões que arquitetam o plano perfeito ("O campeão do mundo").

São nestes contos que Dahl demonstra sua maestria em desnudar o ser humano, ora atraído pelo ridículo, ora genial e muitas vezes capaz das atitudes mais inesperadas, como a esposa que, mesmo viúva, vinga-se do marido que em vida a proibia dos prazeres mais prosaicos. Agora, com o marido "morto", mas mantido consciente através de um experimento científico, dentro de uma bacia, apenas com um cérebro e um olho artificial, Mary tem sua chance. Segue a descrição:

Ao passar pela mesa, ela parou e se inclinou, uma vez mais, sobre a bacia: "A Mary está indo embora agora, amorzinho", disse. "Mas não se preocupe com nada, viu? Assim que for possível, nós vamos levá-lo de volta para casa, onde poderemos cuidar direitinho de você. E ouça, querido..." Nesse momento ela fez uma pausa e levou o cigarro aos lábios, para dar uma tragada.
Imediatamente, o olho brilhou.
Ela olhava diretamente para ele nesse momento e,bem ao centro, viu um ponto de luz pequenino mas brilhante, e a pupila contraída em uma minúscula cabela de alfinete, negra, em absoluta fúria.
(...) Então, muito lentamente, deliberadamente, ela pôs o cigarro entre os lábios e deu uma longa tragada. Inalou profundamente e segurou a fumaça nos pulmões por três ou quatro segundos; depois, de repente, fuuu, expeliu-a pelas narinas em dois jatos finos que se chocaram contra a água da bacia e espalharam-se sobre a superfície em uma densa nuvem azulada, envolvendo o olho.


Bem, no momento não lembro de outra vingança mais bizarra ou divertida...

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A escola vai ao cinema

O filme francês "Entre os muros da escola", ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes e ainda em cartaz em algumas cidades do Brasil, é ótima oportunidade para uma reflexão sobre filmes que expuseram ao público um pouco do dia-a-dia de uma escola. Desde o clássico "Zero em comportamento", de Jean Vigo, cineastas de todo o mundo buscaram nos ambientes escolares a matéria-prima necessária para suas inquietações artísticas. Por hora, queria lembrar de três filmes, de cinemas e culturas diversas, que trataram deste universo: o inglês "Ao mestre, com carinho", o brasileiro "Pro dia nascer feliz" e o já citado francês "Entre os muros da escola".

Filmado em 1967, "Ao mestre com carinho" ("To Sir, with Love") talvez seja o mais popular entre os filmes a abordar a relação entre mestres e alunos. Lembro-me de tê-lo visto há muitos anos, ainda adolescente, numa "Sessão da Tarde" da Globo. O roteiro conta a história do engenheiro Mark Thackeray, que aceita lecionar em um colégio do subúrbio londrino, enquanto não surge um emprego em sua área. A escola onde irá dar aulas fica numa região pobre, com tensões racistas e para onde alunos problemáticos são mandados. O professor, que é negro (vivido por Sidney Poitier) terá que enfrentar estas situações e ensinar os alunos - que a princípio o veem com desconfiança -a necesssidade do respeito e dignidade entre as pessoas.

A tarefa não é fácil, mas aos poucos o professor consegue conquistar os alunos antes hostis, surpreendendo outros professores do mesmo colégio, que se resignavam com a brutalidade entre os mais rebeldes. Mark vai conhecendo também a vida pessoal de alguns deles, e há até espaço para um flerte entre o professor e uma aluna. Um sequência inesquecível é a hora em que Poitier leva a turma para conhecer um museu num daqueles ônibus londrinos de dois andares. As cenas no interior do estabelecimento são mostradas em forma de fotos, como numa sequência de slides, com os alunos aprendendo e se divertindo. Ao fundo, a música-título do filme, "To sir, with love", de grande sucesso à época, cantada por Lulu, que também atua no filme como uma das alunas de Poitier.




"Ao mestre, com carinho" é um filme deliciosamente datado e típico dos anos 1960, no qual as rebeliões juvenis que correram o mundo e mudaram os costumes de toda uma geração são transplantadas para a sala de aula. A ação é quase toda passada em Londres, um dos epicentros das rebeliões juvenis - os meninos fumam e ouvem rock, enquanto as meninas usam a minissaia inventada poucos anos antes por Mary Quant. No fundo, o filme apresenta um verniz conservador, pois mostra um grupo de alunos "selvagens e desajustados" sendo domados por alguém mais velho, que surge na figura de um professor, marcado pela grande interpretação de Sidney Poitier.

Enquanto "Ao mestre, com carinho" é cinema clássico-narrativo em sua melhor forma, o brasileiro "Pro dia nascer feliz" (2006), de João Jardim - diretor de "Jornada da Alma" -, rompe com a ficção para levar ao público um documentário sobre o panorama estudantil brasileiro em três cidades: Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. O filme conquistou nove prêmios, entre eles o de melhor documentário na Mostra de Cinema de São Paulo (Jurí oficial e popular). No site oficial temos a definição do filme feita pelo diretor, como um "diário de observação da vida do adolescente no Brasil em seis escolas". Entre elas, temos a escola da cidade de Manari, em Pernambuco, um dos municípios mais pobres do Brasil; outra, de nível médio em Duque de Caxias, no Rio; além de duas escolas de diferentes perfis em São Paulo, a primeira, particular, de classe média alta no bairro de Alto de Pinheiros, e a segunda, pública, em condições precárias na região de Itaquaquecetuba.

A intenção do filme é mostrar um retrato da juventude brasileira através de sua relação com o ambiente escolar. Há depoimentos de diversos professores e alunos, cenas feitas dentro e fora das salas de aula, onde os "personagens" entrevistados refletem suas angústias sobre o dia-a-dia, que várias vezes extrapola o ambiente estudantil e reflete a situação sócio-econômica brasileira - visível nos contastes entre a rica escola particular de Alto de Pinheiros, em São Paulo, e o colégio público de Duque de Caxias, onde quase todo dia alunos voltam pra casa porque um ou mais professores faltaram. Não por acaso, talvez a cena mais comentada na época de sua exibição nos cinemas tenha sido o caso da menina de uma escola pública que esfaqueou até uma ex-amiga até a morte, dentro do corredor escolar, depois de ter sido barrada na sua festinha de aniversário. O depoimento, em off, da assassina confessa, impressiona por ela não demonstrar nenhum arrependimento e ainda dizer que não ficaria na cadeia muito tempo, por que era menor, e, "no Brasil, de menor não pega nada - três anos passam rápido". (No Brasil, três anos é o tempo máximo que alguém com menos de 18anos fica preso, qualquer que tenha sido seu crime.)

Apesar deste viés desesperançado que muitas vezes o filme nos mostra, o tom é otimista (a começar pelo título, inspirado na canção de Cazuza) e se reflete na bela cena final, com a inteligentíssima aluna pernambucana (a ponto de, segundo ela, alguns dos professores duvidarem da autoria de suas redações), do cenário mais pobre retratado pelo documentário, recitando uma bela poesia feita por ela num exercício de intertextualidade, inspirada na clássica "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.




Se "Ao mestre com carinho" é cinema clássico hollywoodiano, com um tom escapista, e "Pro dia nascer feliz" é seu oposto, um documentário franco e direto sobre a educação brasileira, que busca o olhar crítico do espectador, o filme francês "Entre os muros da escola" (2007), do diretor Laurent Cantet, pode ser situado num meio termo entre a ficção e o documentário. Esta, talvez, tenha sido a característica que levou o filme a ganhar a tão disputada Palma de Ouro - misturar os estilos, romper com o que é ficção e o que é documentário, desvendando o interior de uma escola na periferia de Paris.

O filme é baseado no livro de François Begaudeáu, ex-cantor de uma banda punk, ex-professor, hoje escritor. Begaudeáu faz ele mesmo o papel do professor que leciona para uma problemática turma de nível médio. O diretor também convocou, para os aliunos do professor, diversos jovens sem nenhuma experiência dramática, mas que viveram papéis proximos àqueles que desenvolvem na vida real. Fica claro como a onda dos programas televisivos em estilo reality, com pessoas comuns protagonizando dramas diversos, que vão desde a uma troca de famílias à busca de um prêmio de um milhão de dólares, influenciou também o cinema. O espectador, portanto, não deve esperar um cinema narrativo clássico para assistir e "digerir" o filme francês.






Frequentada por uma França dividida entre diversas culturas - depois dos franceses, há ali alunos de vários países do continente africano, além de árabes, japoneses etc - a escola retratada no filme (e a turma para a qual o professor dá aulas) são o retrato de uma França multifacetada. Para nós, brasileiros, acostumados com nosso eterno complexo de vira-latas, é de se espantar ver ali retratada uma realidade tão parecida (em termos de dificuldades do ensino) como a nossa. Não sei se Cantet viu o filme de João Jardim, mas há entre os dois filmes traços que os unem de forma peculiar. No filme de Jardim, alguém da equipe pergunta (fora de cena) para um aluno o que ele havia aprendido durante o ano. "Nada", é a resposta. Em "Entre os muros da escola", o professor faz a mesma pergunta a uma de suas alunas no último dia de aula do ano, e recebe a mesma resposta. Enquanto no filme brasileiro há a informação de que "não foram permitidas filmagens dos conselhos de classe", o filme francês chega a mostrar uma longa sequência - importantíssima pra a trama - em que um conselho de professores discute a educação dos alunos. E há em ambos os filmes, já no final, a cena da sala de aula vazia, sem alunos e sem professor.

Há também contrastes interessantes entre os três filmes. Se, em "Ao mestre, com carinho", temos a presença de um ator famoso como Sidney Poitier e a trilha sonora pop e envolvente, no filme francês, como vimos, não há astros e a trilha resume-se aos ruídos do ambiente estudantil. E o documentário brasileiro ainda acompanha os passos pós-escolares de alguns dos alunos entrevistados. Em comum, são filmes que procuram no ambiente escolar o cenário ideal para demonstrar as angústias e inquietações dessa fase da vida tão atribulada que é a juventude.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A Globo chegou primeiro

Outro dia eu estava lendo uma crônica do ex-jogador Tostão, intitulada "Nova estrela global". Ela se encerrava deste modo:

"Quando terminou o jogo, Ronaldo não quis falar no gramado. Mas foi só aparecer o repórter da Globo para ele dar entrevista, fora as inúmeras exclusivas que tem concedido à emissora. É a nova estrela global. Muitos jogadores e treinadores famosos fazem o mesmo. Em uma Copa do Mundo, essa preferência atinge níveis absurdos. Esse comportamento dos atletas e treinadores é um desrespeito com outros jornalistas."

Faz dois meses que Ronaldo estreou no Corinthians, após sua contratação no final do ano passado. Fato que pode ser considerado uma espetacular jogada de marketing do time paulista - apenas no dia da apresentação do jogador à torcida, o estoque de camisas com seu nome esgotou e o evento foi manchete em praticamente todos os noticiários nacionais (e alguns internacionais).

Mas, a partir de então, um órgão de comunicação conseguiu muito mais acesso ao craque do que todos os outros - a Rede Globo.

Às vésperas de sua estreia em campo, o jogador esteve presente em vários programas da emissora carioca. Era Ronaldo sendo entrevistado ao vivo no Jornal Nacional (com direito a sentar na bancada, ao lado dos apresentadores Bonner e Fátima), Ronaldo no Globo Esporte. Ronaldo no Esporte Espetacular, Ronaldo no Altas Horas, Ronaldo no Faustão e por aí vai...

E Ronaldo não desagradou à emissora. O trecho que citei do Tostão refere-se à estreia do jogador em campo, contra o Itumbiara, na qual fez um dos gols da vitória do Corinthians. Após o apito final, o "fenômeno" (da mídia?) foi cercado por repórteres e até chegou a se machucar com um dos microfones, tamanho o assédio. Disse que não ia dar entrevista, mas foi só o tempo de chegar o repórter Mauro Naves, da Globo, que a coisa toda mudou. Naves foi mais um global a conseguir entrevistá-lo, fato que irritou bastante as outras emissoras. Ressalte-se que, enquanto pedidos de entrevista e participação em programas de outras emissoras eram sistematicamente negados, o jogador cedia "exclusivas" até para a Globonews.

Tudo bem que a Globo possui uma esmagadora liderança na audiência televisiva. Seu poderio fascina jogadores, técnicos e dirigentes, que preferem dar preferência à emissora quando vão dar entrevistas. Alguns chegam até a participar de chamadas para programas da emissora, junto com os jornalistas de plantão - inconscientemente, atuam como garotos-propaganda da programação global. Não há nada de errado em a Globo buscar o furo, a notícia exclusiva, em entrevistar mais e mais nossos principais atletas. E não é novidade o fato de a emissora ter cacife suficiente para transmitir com exclusividade eventos esportivos como os campeonatos estaduais e a Fórmula 1. Mas é questionável que atletas-celebridades como Ronaldo priorizem apenas a emissora de maior audiência e evitem - ou mesmo ignorem - os pedidos de entrevistas de outras emissoras, jornais e rádios.

No entanto, o fenômeno (!) não acontece apenas na seara do esporte. Em outras esferas, como a política, a econômica e até de assuntos gerais, há infelizmente grupos que privilegiam a Globo ao dar entrevistas.

Um exemplo claro foi o show midiático representado pela prisão de Celso Pitta e Daniel Dantas, no ano passado. A equipe da Globo chegou a filmar o ex-prefeito de São Paulo abrindo a porta, ainda de pijama, para surpreendê-lo junto aos homens da polícia federal. O estranho foi que nestes casos e em outros não havia repórteres de outras emissoras - somente da Globo. Omissão? Inexperiência em correr atrás da notícia? Difícil. No mesmo dia da prisão de Dantas, William Bonner rechaçou no Jornal Nacional a acusação de que a polícia federal teria privilegiado a emissora nas filmagens e apuração daquele dia. A Globo, segundo ele, estaria fazendo o seu trabalho, ou seja, "a busca incessante da notícia relevante, com uma equipe altamente treinada e competente".

Ahã. O comentário leva a mais uma pergunta: e por acaso seriam as equipes jornalísticas das outras emissoras incompetentes? Sabemos que na Globo trabalham excelentes jornalistas, mas, de novo, haveria realmente um privilégio dado aos repórteres da emissora?

O tema é polêmico e não é novo. Aqui mesmo na internet há vários sites de jornalismo que já discutiram em parte o assunto. E também em outras mídias. Em seu programa de rádio na Band News, Ricardo Boechat já reclamou inúmeras vezes do privilégio (não há outra palavra) concedido aos repórteres globais. E Boechat pode falar com conhecimento de causa, pois ele trabalhou nos órgãos da emissora carioca por muitos anos.

Proponho um teste: escolha um dia ou dois para assistir em sequência na TV o Jornal da Band e o Jornal Nacional. Preste atenção nos fatos que foram levados ao ar nos dois telejornais. Depois, compare as reportagens: quem conseguiu as melhores fontes? Na maior parte das vezes, é a Globo. Acontece muito com tragédias envolvendo pessoas comuns. O caso de uma garota que foi atingida por uma bala perdida quando passava em frente a um banco que estava sendo assaltado e que ficara paraplégica recebeu cobertura de ambos os jornais. Na Band, fomos informados de que "a vítima não quis dar entrevista". Meia hora mais tarde, no Jornal Nacional, lá estava a mesma garota, cedendo uma "exclusiva" (palavrinha adorada por jornalistas) ao repórter da Globo.

Quando o fato atinge repercussão nacional - como foi o caso do menino João Hélio no Rio, arrastado pelas ruas preso ao cinto de segurança do carro de sua família roubado por bandidos - a "esclusiva" vira espetáculo, com direito à repórter-celebridade Fátima Bernardes entrevistando os pais do menino no Fantástico. Mais recentemente, tivemos também o pai e a madrasta de Isabela Nardoni - acusados de jogar a menina pela janela de um prédio em São Paulo - jurando inocência na TV. Em que canal? Ora, em mais uma reportagem "exclusiva" do Fantástico.

Casos como esses são sintomáticos num país em que um mega-conglomerado de informação como as Organizações Globo atinge a liderância absoluta na audiência do horário nobre. E que leva muitas pessoas (e até por vezes órgãos públicos) a dar prioridade aos repórteres da emissora. Se houvesse mais concorrência e menos monopólio de informação no Brasil, não haveria distorções como as que de fato ocorrem.

E não precisaríamos ouvir sempre a mesma ladainha de quem cedeu entrevistas exclusivas aos repórteres globais: "A Globo chegou primeiro".