sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Meus passeios com Tuco: no CCBB, junto ao "poço dos desejos"

Pra quem ainda não foi ao CCBB visitar a imperdível exposição do Islã - a mostra se encerra no dia 26 de dezembro, então corram! - um artefato da decoração, logo no hall de entrada, chama a atenção. Trata-se da reprodução de um pequeno chafariz com os traços da cultura islâmica. Há ali também o cenário de uma entrada de mesquita, que atrai jovens e adultos para tirarem fotos. Mas o que tem mais atraído a atenção da molecada é o tal chafariz, com água de verdade e...repleto de moedinhas dentro. Seria um poço dos desejos?

Não sei quem jogou a primeira moedinha dentro do "poço" e fez um desejo, nem tenho certeza se a ideia do poço dos desejos, dentro de nosso imaginário ocidental, veio da cultura islâmica. O interessante é que o tal poço, desde o começo da exposição, revelou-se um grande sucesso, e chegou até a virar notícia dia desses no Globo, que chamava atenção para o fato de que não só crianças, mas também adultos, ao adentrarem o hall do CCBB, reservavam uma moedinha para jogar no poço e fazer um desejo. Prova de que, em tempos nos quais o realismo invade nosso cotidiano de forma violenta, na forma de invasões de favelas e carros incendiados, não há nada de errado em apelar um pouco (nem que seja só um pouquinho...rs) para que nossos desejos se concretizem: sejam eles de paz, de mais grana, um novo emprego, a busca por um novo amor etc.

Confesso que resisti à tentação de jogar uma moeda no poço. Só que, quando meu filho olhou para aquelas moedinhas dentro do local e quis saber qual o motivo, insistiu para jogar uma moeda também. Gostei da brincadeira e coloquei a mão no bolso. Havia apenas uma moeda: de 1 real. A maioria das moedas no poço decorativo não chegava a 25 centavos...mas, ora, qual o pai há de resistir a brincadeira tão lúdica?

Expliquei ao Tuco para antes fechar os olhos, pensar num desejo e jogar a moeda.
Antes, ainda olhei para ele e brinquei: "cuidado com o que vai pedir, heim! papai te deu a melhor moeda".

Tuco fez direitinho o que ensinei: se aproximou do poço, fechou os olhos (um tanto rápido demais) e jogou a moeda de 1 real lá dentro. Voltou feliz. Dei a mão a ele para continuarmos andando. Mas não resisti à tentação de perguntar-lhe o que havia pedido.

"Um salsichão".
"O quê?!"
"Sim, papai. Pedi um salsichão!"
"Mas com tanta coisa pra pedir, Arthur, você me vem com um salsichão!"
"Mas eu gosto de salsichão..."

Foi aí que percebi que seria demais pedir desejos "mais elevados" a uma criança de 5 anos, que adora brincar, ir à piscina, ver desenhos de super-heróis e...comer salsichão!

Naquele dia nem vimos a exposição completa. Era a primeira semana e o CCBB estava lotado. Mas, como sempre, valeu o passeio. No fim de semana, renidos à mesa, na casa de meus pais (que se divertiram com a história), contei de novo para minha irmã, que estava ali com sua filha Juju, de 4 anos. Minha irmã riu muito e chegou a dizer, olhando para o Arthur, "Só você, Tuco, só você...rs".

Só ele? Será? Não resisti e perguntei à Juju, que ficou interessada na história do poço dos desejos, qual seria o pedido dela, quando visitasse a exposição.

Julinha nem pensou muito: "um queijinho no espeto!". Olhei para minha irmã, que também riu com a resposta da filha.

E seguimos com nosso fim de semana. Afinal, nada como o desejo inocente de uma criança - um desejo ainda livre de tanta brutalidade e banalidade cotidiana - para nos permitir um pouco de felicidade numa tarde quente do Rio.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Flanando pelo Centro do Rio, com Keith Haring e o "grande líder".

Quarta-feira de outubro. Final do Festival do Rio. Perambulo pelo Centro da cidade, visando conferir a exposição de Keith Harring e pelo menos algum filme do festival. Confiro o trabalho de Keith, um grande artista que levou seus desenhos aos metrôs e depois às ruas de Nova York, morto em decorrência da aids em 1990. Genial. Haring era uma talentoso desenhista, nascido na Pensilvânia, que virou um grande artista ao mudar-se para Nova York e ingressar na School of Visual Arts. Observando a efervescente e alternativa comunidade artística, Haring encontrou nos corredores do metrô de NY o espaço ideal para aumentar seu público: ali, ao notar painéis de publicidade vazios, cobertos por papel preto fosco, pensou: é ali que vou deixar minha arte. Aos poucos as pessoas começaram a parar, entre a espera de um trem e oputro, para observar aquele rapaz tímido, que às vezes chegava a pintar quarenta "desenhos de metrô" num só dia, segundo o belo livrinho que é dado ao visitante na exposição, "O livro da vida".

Keith Haring morreu cedo, aos 31 anos. O artista se foi, mas sua arte, que pulou os muros da universidade e invadiu ruas e metrôs, está viva em exposições e também no cenário livre das ruas de Nova York, como o famoso painel Crack is Wack.



Saio da Caixa Cultural, onde rola a exposição, e caminho em direção ao Centro Cultural Justiça Federal, na Cinelândia. É meu refúgio em período de festivais: ali sempre tem filmes razoáveis e com lotação não esgotada - quem mora na Zona Norte e decide conferir um bom filme em Botafogo sabe que a chance de voltar pra casa após dar com um "esgotado" na fila do cinema é bastante grande.

O filme que quero ver já foi escolhido com antecedência. Trata-se de "Um espetáculo para o grande líder", documentário em tom fake dinamarquês que retrata a viagem de um grupo de atores à Coreia do Norte com o objetivo de apresentar uma peça, visando um intercâmbio cultural entre os dois países. No entanto, o tal "intercâmbio" é apenas um pretexto para penetrar num dos regimes mais fechados do mundo: a proposta do diretor Mads Brügger(e também narrador do filme), é apenas uma: expor e denunciar a ditadura coreana ao resto do mundo. Como? Através daquela que para ele é uma grande forma de contestação: a comédia.




Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance em 2010, o filme é na verdade um exercício de estilo no qual qualquer menção à objetividade ou imparcialidade deve ser jogada de lado. O tal espetáculo a ser preparado para o grande líder é uma comédia no estilo do teatro bufão, onde os únicos atores são dois jovens, Jacob e Simon, de origem coreana e que foram adotados por dinamarqueses desde cedo. Assim, o diretor e sua troupe conseguem entrar sem problemas na Coréia do Norte.

Sem problemas, mas com vigilância total. É escalada uma senhora que irá seguir os passos do grupo por onde forem. A senhora se afeiçoa por Jacob, o mais jovem dos atores, que também é deficiente, algo a princípio não tolerado na Coreia. Há uma cena hilária logo no começo, quando os dois atores se apresentam num parque coreano para uma comitiva de burocratas norte-coreanos - todos estes fazendo cara de pasmo total ante a bufonaria apresentada no palco, com direito até à versão de "Wonderwall", do Oasis, ao final. Pressentindo a tragédia, o diretor começa a falar em fazer as malas e voltar para a Dinamarca, quando...o espetáculo é aprovado!

Mas, na Coréia do Norte, nada é tão simples. Sob pretexto de tornar a peça mais palatável para o público norte-coreano, os burocratas do partido começam a dar palpites recorrentes no espetáculo, até quase o desfigurarem por completo. Apesar das tentativas de argumentação, o diretor segue as recomendações dos burocratas. Chega uma hora em que todos da equipe parecem estar representando: os dois atores, que preparam a peça sob vigilância, o diretor e equipe, que seguem seu roteiro de visitas aos marcos da ditadura norte-coreana, e até os burocratas, que representam, fidedignamente seu respeito supremo ao "grande líder", o ditador norte-coreano Kim Jong-il.

O mais impactante está por vir. Muito bem tratado pelo povo norte-coreano, o deficiente Jacob (de raízes coreanas, vale repetir) identifica-se com o povo e começa a questionar as reais intenções do diretor, que pelo menos na narração em off, trata sempre de desmistificar o cenário norte-coreano e sua ditadura socialista. Ao serem convidados a assistir uma marcha gigantesca de soldados coreanos, "em homenagem ao grande líder e contra o imperialismo norte-americano" Jacob recusa-se a bater palmas e a saldar com a mão estendida e punhos cerrados a marcha, deixando o diretor desconcertado. Os dois chegam a discutir: o ator manda o cineasta parar de mentir; ao que o diretor retruca que deve continuar mentindo, "para o bem do filme".

Ao final a peça finalmente é apresentada, com todos os cortes, modificações e censura efetuados pela equipe de burocratas. É um sucesso. Na despedida, a senhora responsável por acompanhar diariamente a equipe ensaia um choro e abraça Jacob. O diretor ainda deixa uma cartada final para este últimos momentos, ao tentar fazer Jacob perguntar à senhora norte-coreana onde ele poderia encontrar deficientes como ele, já que em toda a passagem pelo país ele não havia visto nenhum. Mas Jacob deixa a pergunta pela metade, e a senhora coreana dá uma resposta evasiva. Ao subirem os créditos, uma pergunta incômoda não pode deixar de ser feita: quem manipula quem na obra de arte? E na vida real?

Saí do cinema satisfeito com o instigante filme e com uma pequena dúvida: seria possível a arte de um artista como Keith Haring - homossexual, e que representou muito de sua arte nas ruas? Não teria sido mais um a ser perseguido pelos acólitos do "grande líder"? Fica a questão. A história já demonstrou que a arte pode se desenvolver em qualquer espaço, mesmo em regimes totalitários. Mas para que ela floresça de verdade e alcançe o público, é sempre bom optar pela democracia. Mesmo sendo esta, a exemplo da arte, sujeita às mais diversas "representações".