sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O outono do apanhador e o despertar da primavera

Houve um tempo em que adolescência era um termo que não existia, e a juventude como a conhecemos hoje era apenas uma passagem sem importância a ser transcorrida entre a infância e a idade adulta - esta sim a fase "importante" do homem. A adolescência e a culura jovem como a conhecemos hoje deve muito à eclosão do rock n' roll em meados dos anos 1950 e a filmes da mesma época, como "O selvagem" (com Marlon Brando) e "Juventude transviada" (com James Dean). Antes disso, porém, duas grandes obras escritas entre o final do século XIX e a metade do século XX ousaram levar ao público um painel desta fase da vida repleta de dúvidas e inquietações. Estou falando da peça "O despertar da primavera" e do livro "O apanhador no campo de centeio", cujo autor, o recluso J.D. Salinger, morreu esta semana.

Esta crônica está em clima de despedidas. No Rio, despede-se da temporada a peça "O despertar da primavera", depois de figurar em todas as listas de melhores do ano e emocionar uma multidão de espectadores - entre eles muitos jovens que estavam afastados do teatro e que foram não uma, mas duas ou mais vezes conferir. "O despertar da primavera", de Franz Wedekind, foi escrita em 1891, transformada em 2006 num musical pelos americanos Duncan Sheik e Steven Sater e adaptado aqui no Brasil pela dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho. Se você ainda não conferiu, é a chance para um novo despertar - cultural, rebelde e emocionante. E que diz muito ao espírito jovem que todos devemos (ou deveríamos) trazer dentro de si.

Espírito jovem? Sim, se lembrarmos que a peça de Wedekind se passa em fins do século XIX, época de repressão e moralismos, desejos sublimados e opressão. Conta a história de Melchior Gabor, aluno brilhante e rebelde de uma escola ultra-conservadora que se apaixona por Wendla, uma jovem educada pelos pais com rigidez excessiva. Há um núcleo básico entre os três elementos que simbolizam a repressão ao jovem: a escola, a família e a igreja. Os diretores Möeller e Botelho reduziram os atores adultos em cena para apenas um casal e chamaram 19 jovens para o elenco do musical. Ali, os adultos e suas convenções são os inimigos. E a busca do sexo - elemento principal da trama - um tabu a ser enfrentado. Wedekind ousou colocar vários conflitos nos personagens dos jovens em sua trama, como o sexo e a gravidez na adolescência, aborto, suicídio e homossexualismo. Por tudo isso, teve sua peça censurada por décadas. "O despertar" só foi encenada sem cortes ou censura em 1974, muitos anos depois da morte do autor.



Se Wedekind não teve tempo de conferir sua peça na íntegra como imaginou e escrevera, o escritor J.D. Salinger conheceu a glória em vida, mas jamais buscou aproveitar os louros da fama, preferindo viver por décadas recluso na pequena cidade de Cornish, um vilarejo em New Hampshire. Recusava-se a dar entrevistas a qualquer um e nunca cedeu direitos de seus livros para o cinema. Mesmo assim, sua obra mais conhecida, "O apanhador no campo de centeio", romance escrito em 1951, vendeu mais de 60 milhões de exemplares até hoje e estima-se que ainda venda por ano 250 mil exemplares. Qual a razão do fascínio?

Muitos tentaram explicar. O jornalista e escritor José Castelo definiu a obra no jornal O Globo como um "assombro que nunca termina". Um assombro que ele e muitos jovens em todo o mundo teriam sentido ao lerem a obra na juventude. Ou, como escreveu um crítico da revista "Time" à época: "Ele consegue entender a cabeça de um adolescente sem ter uma". Sim, porque toda a trama é narrada por um adolescente, Holden Caufield, no espaço de um final de semana, no qual, recuperando-se de uma crise nervosa, o jovem relembra dos últimos encontros que tivera - um profesor, uma ex-namorada... A originalidade para a época está no fato de o livro relatar todas as inquietações típicas da juventude, suas gírias, palavrões, manias, sua rebeldia aparentemente sem causa etc. Talvez por isso milhares de jovens tenham se identificado com o protagonista. Talvez, também, por este motivo o livro tenha sido até os anos 1980 censurado em escolas, enquanto em muitas outras é ainda hoje leitura obrigatória.

Deixemos então uma lágrima para Salinger, que viveu seu longo outono em reclusão, indisposto à fama e a qualquer encanto do mundo do entretenimento, e saudemos o despertar da primavera. Se existe o paraíso, em algum lugar o recluso escritor poderá encontrar e conversar longamente com o alemão Franz Wedekind. Enquanto isso, suas obras ainda continuarão por muitos e muitos anos sendo lidas ou encenadas, e emocionando as as mentes livres com um pouco da poesia e liberdade do que é ser e manter-se jovem.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

We will rock you: 25 anos do Rock in Rio


Numa bela tarde do ano de 1984 o empresário do grupo Queen atendeu ao telefone um tanto surpreso. Seu assistente dizia ser uma ligação internacional vinda do Brasil. Do outro lado da linha o brasileiro se apresentou: seu nome era Roberto Medina e queria contratar a banda para um show dali a um ano no Rio de Janeiro. Onde, no Maracanã?, perguntou o empresário. Não, respondeu o brasileiro, mas sim num terreno de 250 mil metros quadrados, no ainda longínquo bairro da Barra da Tijuca e próximo a Jacarepaguá. O brasileiro ainda avisou ao inglês que aquele seria o maior público que o Queen (então no auge)atingiria em toda a sua carreira. Incrédulo, achando tratar-se de uma grande piada, o inglês riu e não tardou a desligar o telefone, não sem antes prometer enviar àquele brasileiro sonhador uma garrafa de espumante, "no lugar da banda".

Ouvi a historinha contada pelo jornalista João Carlos Santana, do programa da CBN Sala de Música, ao lembrar dos 25 anos do primeiro Rock in Rio. Como o tempo passou rápido! Em janeiro de 1985, alguns meses depois do fatídico telefonema, multidões começaram a rumar para o local dos shows. Eu estava lá, com 15 anos de idade, e estive presente em três noites do festival que mudaria os rumos da indústria de entretenimento no Brasil.

Foi preciso ver para crer. Em meados de 1984 saiu uma notinha na coluna do Zózimo (um dos jornalistas mais bem informados da época) e havia ali a informação, pela primeira vez, de um festival de rock de grandes proporções no Rio de Janeiro, em janeiro de 1985, contando com estrelas nacionais e internacionais. Se antes apenas o inglês não levara a sério a notícia, desta vez muitos brasileiros duvidaram. E não era para menos: no Brasil de então, prestes a sair de uma ditadura militar, não havia nenhum antecedente de grandes shows de rock, nem de grandes festivais ao estilo Woodstock. Ainda mais de rock!?!? Aos olhos da inteligentzia tupiniquim, como cantara Rita Lee, roqueiro brasileiro sempre tivera cara de bandido.

Bem, Roberto Medina seguiu com sua loucura e o projeto acabou saindo do papel. E o empresário cumpriu a promessa de levar ao Queen o seu maior público: quase 300 mil pessoas assistiram extasiadas à banda, com o vocalista Fred Mercury regendo um coro de centenas de milhares cantando "Love of my life" e We will rock you". Fiz parte do coro destas músicas no primeiro dia, o qual estive presente com irmão, primo e amigos, depois de um périplo de mais de duas horas para chegar ao local - num tempo sem Linha Amarela, era necessário pegar um ônibus até a Central do Brasil e depois outro que nos levaria até o local. Carro? Nem pensar, éramos todos adolescentes e fãs de música, com dinheiro contado nos bolsos.

Foi neste dia também que o Iron Maiden realizou um show nota 10, com um profissionalismo de se aplaudir e conquistou uma legião de fãs brasileiros. Aliás, foi durante o festival que se começou a ouvir aqui e ali o termo "metaleiro", para designar os fãs de heavy metal - alguns na época bastante intolerantes com artistas que não os agradavam. Como Erasmo Carlos, que prativamente fou expulso do palco pelos fãs de heavy metal.

Mas, se Erasmo Carlos teve recepção amarga de parte do público, outros artistas brasileiros realizaram ali show inesquecíveis, mesmo com a discrepância de infra-estrutura entre artistas nacionais e internacionais. O cenário dos internacionais era melhor e quase megalomaníaco em alguns casos (a banda AC/DC fizera questão de ter no cenário um imenso sino de 6 toneladas, que teve que vir de navio, para que durante a apresentação da banda ele soasse no começo da música "Hells Bells") e o som, durante os shows internacionais, era bem mais alto.
Pouco acostumados com shows de grandes proporções, uma banda de Brasília que tinha apenas dois discos no currículo - os Paralamas do Succsso - improvisaram dois vasos de samambaias como "cenário" do palco e mandaram ver um show contagiante, que os projetou Brasil afora. Baby Consuelo (depois Baby do Brasil, atual Baby de Jesus, amanhã não sei) com a presença em sua banda de seu marido na época, o guitarrista Pepeu Gomes, conseguiu ser aplaudida até por roqueiros empedernidos após uma versão incendiária do clássico "Brasileirinho". Blitz (ainda na ativa), Lulu Santos e Barão Vermelho (com Cazuza) levaram o público ao delírio.

Outro show inesquecível foi o do dia 13, quando Rod Stewart encerrou a noite fazendo todo mundo cantar e dançar seus clássicos - "Sailing" foi cantada por mais de 100 mil. Lembro ainda de quando Rod levou uma versão super roqueira de "Twisting the night away", um dos clássicos de seu ídolo, a lenda soul Sam Cooke. Neste mesmo dia ainda tivemos as Go Go's, um grupo californiano só de mulheres, e a apresentação da alemã Nina Hagen, que surpreendeu quem não a conhecia com um ótimo show.

Mas também não consigo esquecer da chamada noite do heavy metal. Não era pra menos: no mesmo dia 19 de janeiro estavam escalados Whitesnake, Scorpions, Ozzy Osbourne e, fechando a noite, AC/DC. Ouso dizer que, mesmo com toda a chuva que caiu na véspera e durante o dia - que transformou a cidade do rock num imenso lamaçal - nunca mais os metaleiros terão aqui no Brasil uma noite tão boa e representativa do gênero. Os show foram excelentes, com alguns detalhes curiosos, como a galinha entregue a Ozzy Osbourne - que, reza a lenda, gostava de morder galinhas vivas no palco para beber o sangue - por alguém da fila do gargarejo. Bons tempos aqueles em que não existia plateia vip composta por celebridades entediadas à frente dos outros... E também a irresistível foi a apresentação do AC/DC, com um show de guitarra de Angus Young, coroando a apresentação com tiros de canhão em "For those about to rock - we salut you".

Enfim, foram 10 dias de muita música, paz e chuva. Após o festival, tornou-se comum que as grandes bandas pop incluíssem o Brasil no roteiro. Quem trabalhava com eventos amadureceu da noite pro dia e teve que se profisionalizar, com o tamanho e os números do festival.

Após 1985, houve ainda mais duas edições do Rock in Rio por aqui: a segunda, em 1991, no Maracanã, e a terceira, em 2001, de novo em Jacarepaguá. Com o preço do dólar nas alturas e as dificuldades enfrentadas, Medina levou a marca para a Europa e em 2004 houve o primero Rock in Rio Lisboa, de novo um sucesso de público. Hoje já há também o Rock in Rio Madri, na Espanha e para o ano que vem há a possibilidade de mais edições, na Polônia e...de novo no Rio. É o desejo de Medina, que está em negociações com a prefeitura do Rio para conseguir um local para seu festival que tornou-se um evento planetário.

Quem esteve presente em qualquer das edições do festival - e enfrentou as longas distâncias, a cerveja quente, a lama etc - sabe que valeu a pena. De minha parte, os shows inesquecíveis que vi naquele janeiro de 1985 só me fazem repetir um dos slogans do evento: eu vou!


quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Um prêmio anual à estupidez humana

A expressão "tragicomédia" tem origem teatral e diz respeito a uma peça ou situação com caráter de tragédia, mas permeada de humor pelos incidentes e desenlace - muitas vezes involuntário. Podemos descrever como exemplo de "situação tragicômica" a desafortunada tentativa de dois ladrões belgas em detonar, com dinamite, o caixa eletrônico do banco o qual resolveram assaltar. Ao exagerarem (em muito) na carga de explosivos, os infelizes acabaram explodindo a agência inteira - e a si próprios. O curioso fato chegou aos ouvidos dos organizadores do Prêmio Darwin, que resolveram por unanimidade agraciar o fato com o primeiro lugar de 2009.

Pra quem ainda não sabe o que é o Prêmio Darwin, vamos explicar. Trata-se de um prêmio criado na Inglaterra, que desde 1991 escolhe as histórias de mortes consideradas as mais estúpidas do ano, para homenagear "os que melhoram as espécies ao acidentalmente se retirar dela". A explicação científica do site ressalta que os indivíduos agraciados com o prêmio, ao fazerem jus a ele - ou seja, morrerem -, contribuem para a melhoria da genética humana, ao afastarem os "maus genes". Não deixando descendentes, não há risco de a estupidez passar de pai pra filho. Darwin, o homem que mudou definitivamente a ciência humana, em algum lugar deve estar se divertindo a valer com a "homenagem". Que ironia!

O Brasil não poderia ficar de fora do prêmio. No ano passado o Darwin Awards premiou em primeiro lugar o padre gaúcho Adelir de Carli, que teve a criativa ideia de voar puxado por mil balões de gás hélio na região Sul, vindo a morrer no mar em meio a um temporal. No site do Prêmio, há um tributo ao "padre baloneiro", contando em detalhes sua quase façanha: precavido, Adelir providenciou um verdadeiro kit de sobrevivência para levar junto e até um aparelho de GPS para se comunicar caso houvesse algum problema na viagem. Só se esqueceu de uma coisinha: não sabia usar o GPS!

(O mais curioso é que o padre não foi o único a cortejar a estupidez desta forma: segundo o site, em 1982, um americano se prendeu a 45 balões do tempo e, após várias intempéries no céu, voltou vivo pra contar a história - aliás, o fato teria inspirado a história de um dos melhores filmes de 2009: "Up: Altas aventuras", e seu adorável velhinho rabugento louco por balões).

A notícia que li no JB sobre a eleição do prêmio conta que este ano o Darwin foi bem disputado. Em segundo lugar, ficou um americano de 30 anos que, não aguentando de vontade de urinar, parou seu carro no meio da rodovia e se encaminhou para a mureta a fim de se aliviar. Quando viu o número de carros passando, ficou com vergonha e buscou mais privacidade pulando a mureta. O coitado só não percebeu que estava em cima de um viaduto, e morreu estatelado no chão.

O terceiro lugar é ainda mais bizarro: uma mulher, também americana, passeava de bicicleta quando o mal tempo fez surgir uma enchente e ela acabou caindo num rio. A polícia chegou bem a tempo de salvá-la. Quando os policiais se distraíram, a moça mergulhou de volta no rio: queria encontrar a bicicleta. Segundo o jornal, desta vez não houve chances de salvamento.

Pra falar a verdade, a originalidade do Prêmio Darwin é o caráter mórbido da coisa: o sujeito (ou sujeita) tem que morrer para "conquistar" o prêmio. O agraciado é sempre um "vencedor póstumo". Mas congratulações à estupidez sempre estiveram presentes em nossa imprensa.

Lembremos de Sérgio Porto e sua criação, o Febeapá, que não era prêmio mas sim um "festival", ou o "Festival de besteiras que assolam o país". Após a tomada do poder pelos militares, em 1964, Sérgio começou a selecionar diversas notícias que saíam nos jornais de norte a sul do Brasil. Segundo ele, estas notícias serviam para caracterizar os abusos cometidos sob inspiração da nova ideologia governamental. Dois exemplos coletados pelo colunista, de meados dos anos 60:

"Em Mariana (MG) um delegado de polícia proibiu casais de sentarem juntos na única praça namorável da cidade e baixou portaria dizendo que moça só poderia ir ao cinema com atestado dos pais. No mesmo estado, mas em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões da polícia pelas arquibancadas dos estádios porque 'daqui pra frente, quem disser mais de três palavrões, torcendo pelo seu clube, vai preso' ".

"Quando se desenhou a perspectiva de uma seca no interior cearense, as autoridades dirigiram uma circular aos prefeitos, solicitando informações sobre a situação local depois da passagem do equinócio. Um prefeito enviou a seguinte resposta, à circular: 'Doutor Equinócio ainda não passou por aqui. Se chegar será recebido como amigo, com foqguetes, passeatas e festas' ".

E pra não dizer que tivemos nosso próprio prêmio à estupidez na imprensa, lembremos aqui do saudoso troféu criado por Augusto Nunes, à época de sua passagem pelo JB, o Troféu Yolhesmann Crisbelles (nome que não quer dizer rigorosamente nada). O Crisbelles foi concebido, segundo o colunista, "para contemplar declarações tão pomposas quanto vazias, frases ininteligíveis ou textos amalucados", como essa espantosa frase do ministro das Minas e Energia, Edson Lobão, em 2008, sobre a possibilidade de algum apagão no pais:

"Deus é brasileiro, e podemos contar com a ajuda de São Pedro. Por isso, posso garantir ao país que não haverá um apagão energético."

Na época, Nunes desconfiou: "É bom lembrar que São Pedro não tem passaporte verde e Deus anda ocupado demais para vigiar pessoalmente a quantas anda o país natal". Não deu outra: em 2009, tivemos novo apagão em quase todo o país. Procurado pela imprensa, desta vez Lobão saiu pela tangente: colocou a culpa nas "condições atmosféricas" e concluiu, solenemente: "Assunto encerrado!"

Bem, o ministro decretou e nós ouvimos: o assunto está encerrado (pelo menos até o próximo apagão...). O que não está encerrada é a estupidez. No livro "Como me tornei estúpido", o escritor Martin Page cria a histíoria de um rapaz brilhante que, para conseguir ser plenamente aceito na sociedade em que vive, investe na idiotice.

Não preciso nem responder se ele consegue, não é mesmo?