segunda-feira, 28 de março de 2011

Música e Imagens - Assistindo "Metrópolis" no Municipal

Estive semana passada no Teatro Municipal do Rio para um acontecimento imperdível - a exibição da obra-prima "Metrópolis", de Fritz Lang, na versão restaurada e com acompanhamento de orquestra. Para quem adora cinema, foi um momento único de conferir esta superprodução do cinema mudo (o filme é de 1927), acompanhado pela trilha original e na sua versão quase completa: há alguns anos, foram encontrados em Buenos Aires cerca de 25 minutos originais do filme que se supunham perdidos para sempre. O trabalho de restauração levou um bom tempo e enfim, a exibição no Municipal foi a mais próxima daquela imaginada pelo diretor.



A primeira vez que assisti "Metrópolis" foi há mais de 20 anos. Eu tinha 18 anos e estava me preparando para fazer o vestibular para Comunicação. Como todo jovem de 18 anos, estava descobrindo coisas novas, entre elas o cinema e sua história. Na época, o cinema Estação Botafogo (que ainda se chamava "Cineclube Estação Botafogo") abriu um curso sobre a história do cinema, ministrado pelo ex-cineasta Pedro Camargo. Apesar de curtir cinema desde criança, foi durante este curso que me tornei cinéfilo, passando desde então a querer conhecer a história mundial do cinema e todas as suas fases, seus clássicos, seus grandes diretores etc. Vários clássicos foram mostrados ali, como "Encouraçado Potenkim", "Intolerância", "Cidadão Kane" (que vi pela primeira vez no exato dia em que completei 18). Nas aulas sobre o expressionismo alemão, dois filmes me impressionaram: "O gabinete do dr. Caligari" e "Metrópolis".


Claro que o professor não mostrou o filme todo, mas o pouco que vi naquela aula me impressionou. É incrível como Lang conseguiu dar realismo a um filme de ficção-científica ambientado em 2026, com aquele planos gerais da cidade futurista e ainda os milhares de extras contratados para a produção. O filme narra a história de uma sociedade dividida em duas classes. Acima do solo, a classe dominante, com sua burguesia e caprichos capitalistas. Nos subterrrâneos da cidade, vivem milhares de pessoas que - numa crítica clara à opressão da sociedade industrial, tal como Chaplin iria fazer depois em "Tempos modernos" -, vivem em condições mínimas, obrigadas a trabalhar o dia inteiro acertando as máquinas e os ponteiros para que a cidade de cima não entre em pane. A trama começa a se definir quando o filho de um empresário e industrial, "dono" da cidade, atraído pela entrada em cena de uma bela mulher, resolve ir atrás dela nos subterrâneos. Lá, ele trocará de lugar com um operário, e sofrerá na pele as rígidas normas do trabalho massacrante até encontrar a moça, que é uma espécie de líder dos "de baixo".


Ao saber disso, e com a convicção de que a moça planeja uma tomada de poder utilizando o povo subterrâneo, o pai do rapaz chama um cientista para idealizar e construir um robô à imagem e semelhança da moça, a fi de que esta semeie a discórdia entre os revoltosos e acabe com qualquer ideia de revolução. Mas o cientista tem planos ainda mais delirantes para sua criação...


"Metrópolis" foi então o filme mais caro da história do cinema alemão, e teria impressionado até um jovem político chamado Adolf Hitler, que convidou Lang para realizar filmes ligados à ideologia nazista. A mulher do diretor, Thea Von Harbou, autora do romance que deu origem ao filme e coautora do roteiro em parceria com o marido, aceitou o projeto. O marido não: o casamento terminaria ali. Lang não concordou e foi para Paris, de onde mais tarde, como recrudescimento do nazismo, partiria para os Estados Unidos, onde continuou sua carreira e realizou vários clássicos, como "Fúria".


Os pouco mais de 20 minutos acrescentados à obra deram mais sentido ao filme original, ficando ainda melhor. Numa época em que ainda não havia o procedimento hoje conhecido como "director's cut", em que filmes cortados à revelia do diretor na época do lançamento são mais tarde relançados contendo a suposta "versão original" (e quando o processo começa a se banalizar), o diretor alemão, se vivo estivesse, com certeza se emocionaria com a versão de seu filme quase completo num grande teatro. Ou seja, quem esteve ali no Municipal com certeza viu o filme numa versão melhor do que aquela mostrada em 1927, já que em muitos países, como nos Estados Unidos, os produtores cortaram várias cenas para que a exibição atendesse aos formatos de duração de um filme à época.


Muitos que veem hoje o filme criticam seu final conciliador, no qual o líder dos operários aperta a mão do empresário e dirigente máximo da cidade futurista, enquanto os letreiros salientam que "o mediador entre a cabeça e as mãs deve ser o coração". Há ali uma crítica ao poder das máquinas na sociedade industrial, que teriam derrubado o sentimento humano e transformado todos em seres automatizados, ou "robôs" - vale conferir as cenas da multidão se preparando para a troca de turno no trabalho, com movimentos perfeitamente sincronizados, com máquinas.


Eu prefiro ressaltar a importância do filme para a cultura cinematográfica e pop que viria nas próximas décadas - Metrópolis" inspirou de Chaplin a "Blade Runner", rendeu uma versão colorizada e com trilha rock n' roll nos anos 1980, inspirou videoclipes de artistas como Queen e Madonna, quadrinhos, moda, além de uma infinidade de filmes de ficção-científica ao redor do mundo. O mais importante: o filme continua absolutamente moderno em sua plenitude.


Após a exibição do filme e os aplausos efusivos do público do Teatro Municipal, naquela noite de quarta-feira, não pude lembrar de alguns teóricos da Escola de Frankfurt, que viam os produtos da comunicação de massa (tais como o cinema) como um indício da "derrocada da cultura em mercadoria": uma cultura que havia perdido sua autenticidade e sua "aura" de fruição. No entanto, o tempo passa e hoje as fronteiras que demarcavam as culturas erudita e popular estão cada vez menos nítidas. O que diriam o aristocráticos pensadores da Escola caso pudessem conferir o filme do modo que foi exibido no teatro? Ora, a exibição de um filme derivado de uma arte popular e "de massa" num ambiente ligado à grande arte como o Teatro Municipal do Rio de Janeiro é apenas um exemplo de que a arte - popular ou erudita, alta ou baixa, aristocrática ou de massa -, e tantas outras definições erráticas que perpassaram os séculos anteriores não deve estar ligada a considerações redutoras. Uma obra-prima é uma arte que transcende sua época e continua influenciando gerações e gerações de indivíduos nas décadas seguintes. E "Metrópolis" é um perfeito exemplo. Aliás, em qualquer mídia: com o anúncio do lançamento da versão remasterizada em DVD e Blu Ray, o apreciador de um bom filme poderá conferir que em qualquer ambiente "Metrópólis" continuará luminoso.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O bebê de tarlatana rosa - versão 2011

A folia está chegando...Marginal conservador está, como dizia a música do Chico, se guardando pra quando o carnaval chegar. Mas antes queria aqui deixar registrada a história da incrível e aterradora foto ganhadora do World Press Photo de 2010.

Trata-se do retrato da jovem afeganistã Bibi Aisha, que, ainda bem jovem, casou com um homem que não amava e, pior, era bem violento. Poderíamos refletir se o casamento teria sido arranjado - como ainda o são muitos em países muçulmanos - ou não. Mas o pior ainda está por vir.

Um dia, cansada da violência do marido, Bibi foge de casa e se refugia na casa dos pais. O marido, indignado, a procura e a toma de volta. Não satisfeito, exige um julgamento pela regras do Talibã. A sentença é cruel: com a ajuda do cunhado, o marido corta as orelhas e o nariz de Bibi, depois a abandona à própria sorte. Algum tempo depois, uma organização de ajuda humanitária a encontra e a leva para os Estados Unidos, onde vive hoje. Desde então, Bibi frequenta sessões de ajuda psicológica e já passou por várias plásticas para reconstruir os órgãos extirpados.

Não, não vou deixar aqui a foto registrada em plena época de folia, mas quem quiser pode ir direto ao site do World Press Photo e conferir. O retrato de Bibi sem o nariz e vestida com o véu árabe me faz lembrar de outra jovem afegã, Sharbat Gula, a menina de 12 anos cujo belíssimo rosto saiu na capa das 100 melhores fotos de todos os tempos da revista National Geographic. Em 2002, a menina foi reencontrada pela equipe da revista e mereceu novo registro. Na imagem, as marcas do tempo impiedoso, que reflete uma mulher já madura, de trinta anos, de semblante não mais assutado, mas, como escreveu o crítico Ademir Pascale em bela resenha, dona de um olhar ainda expressivo, embora maduro e cansado.

O retrato da afegã Bibi, desfigurada, me leva ainda a lembrar de um conto do genial João do Rio, passado numa época de Carnaval do começo do século passado, em que as máscaras imperavam nos bailes e as ruas eram invadidas pelos primeiros blocos, ainda chamados de cordões ou corsos. Em, "O bebê de tarlatana rosa", um folião sente-se atraído por uma mulher durante um carnaval nas ruas do Rio. Ela, como tantos outros, está com uma máscara em que é ressaltado um falso nariz. Após um jogo de sedução de parte a parte, chega uma hora em que o homem, narrador da história, pede que a moça retire o falso nariz, para apreciá-la melhor. A moça reluta o quanto pode: por alguma razão, ela quer permanecer mascarada.

De tanto insistir, o homem tem o seu desejo atendido. A moça, vencida, subitamente fica séria e retira a máscara. O homem, então, aterrorizado, vê a realidade que não deveria ter presenciado: a moça, dona de um defeito genético, não tinha nariz, e sim um buraco no meio do rosto por onde conseguia respirar. Seu único momento de felicidade era durante o Carnaval, onde colocava a máscara e podia se confundir na massa de foliões, arlequins e colombinas sem "agredir" ninguém com seu estado.

Bibi Aisha é o "bebê de tarlatana" deste novo século tão conturbado por guerras, injustiças e opressões, onde mulheres em diversas regiões continuam sendo vítimas de intolerância dignas da Idade Média, ou pior. Com certeza, ao darem o primeiro prêmio ao seu retato desfigurado, os organizadores do World Press Photo quiseram deixar um claro recado à sociedade. Uma denúncia de costumes bárbaros em tempos de progressos tecnológicos e redes sociais.

Torçamos para que os médicos americanos consigam reconstruir o nariz e as orelhas de Bibi Aisha. E que continuem prestando todo o apoio psicológico para que ela não perca sua dignidade, que já demonstrou ter ao fugir de uma situação na qual milhares de afegãs são obrigadas a passar. E que um dia ela possa ver que ainda existe alegria no mundo, como nos carnavais mundo afora, quando todas as máscaras deveriam estar apenas a serviço do prazer.