quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Livros para colorir? Não, obrigado.

Lendo o jornal dia desses, não pude deixar de me divertir com a charge de Bruno Drumond, publicada na Revista do Globo. Em um restaurante, o garçom recebe o pedido de um casal e aponta para o menino que está com eles. "Quer que eu traga um desenho para colorir?". Os pais escutam e, felicíssimos, respondem juntos à pergunta endereçada ao filho: "Queremos!!!".

O mercado editorial está comemorando ao atual boom dos livros para colorir...feitos para adultos. Para sobreviver num país que quase não lê, nossa indústria editorial lança mãos das mais inusitadas ferramentas. Já houve a onda dos livros de gastronomia, dos livros de auto-ajuda, dos livros ligados ao espiritismo etc. Mas, vamos combinar, livro pra colorir destinado a adultos é um pouco demais, não?Já há inclusive livros para colori mais específicos, procurando diversos públicos: mandalas pra colorir, árvores de natal pra colorir, gatos pra colorir, profissões pra colorir etc.

Sou a favor de quaisquer tipos de leitura, sem preconceito. Não sou adepto das listadas acima, mas entendo que pelo menos a leitura deles tornem a pessoa mais articulada e com chances de se ver livre do analfabetismo funcional. Agora, de novo...livros pra colorir?!



Não dá. Outro dia mesmo tive que me segurar na mesa do jantar entre amigo porque, quando fui criticar este tipo de leitura (?) duas professoras a defenderam. Só não parti pra cima delas porque ambas eram do curso de Design. Compreende-se.

Mas e as outras pessoas que compram muito felizes este tipo de literatura (?) e argumentam que funciona como uma forma de "terapia" ao cotidiano corrido e à realidade que nos cerca.

Desculpe, mas não me convencem.

Se a questão é o escapismo, há excelente literatura capaz de empreender as maiores viagens para um ser humano que se disponha a mergulhar no universo da ficção ou da não-ficção.  

Acho mesmo que ocorre uma infantilização do público leitor no Brasil, algo universal mas que num país iletrado toma grandes proporções. Não falo apenas da literatura. Confira a lista dos filmes mais vistos: salvo exceções, são todos produções norte-americanas relacionadas a super-heróis ou comédias rasteiras e vulgares abusando da escatologia. A grande maioria dos filmes voltados ao público adolescente, hoje o maior público-alvo da indústria. Creio que um grande filme de época como "O poderoso chefão", adulto e excelente, seria algo inviável para as novas plateias.

Uma vez me diverti com uma entrevista feita com um livreiro carioca, o qual argumentava que os livros de gastronomia eram mais comprados do que aqueles de grandes filósofos, que vendiam razoavelmente até os anos 1970: "Trocou-se a filosofia por um risoto", dizia ele.

No caso dos livros para colorir, trocou-se a inteligência pela preguiça.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Um filme, uma canção, uma cena (ou porque ainda vale a pena ir ao cinema)

Certos filmes valem a ida ao cinema apenas por uma cena. Ela tem de ser suficientemente forte para que não saia da mente do espectador após o fim dos créditos. Ela tem que ser de tal forma especial que o fará lembrar dela sempre, nas situações mais diversas. A trama do filme pode, ao longo dos anos, ir se perdendo na memória, como em grande parte dos filmes. Mas aquela cena não. Ela tem que possuir algo que mexerá de alguma forma com o público.

Numa palavra, ela tem que lhe arrebatar.

Foi o que senti recentemente, ao assistir o filme alemão "Phoenix", dirigido por Christian Petzold e estrelado por uma atriz em ascensão, Nina Hoss. A história é um drama de suspense sobre uma cantora de cabaré judia, Nelly, que durante um atentado, é desfigurada na face ao final da Segunda Guerra. Internada, ela recebe a ajuda de um cirurgião plástico que a ajuda a ter um novo rosto - mas não igual ao que ela tinha. Apenas parecido.


A troca de rosto da personagem é uma metáfora para sua nova identidade. Perdida numa Alemanha derrotada, num pós-guerra difícil e conflituoso, Nelly encontra abrigo na casa de uma amiga, que a acompanha antes e durante a operação e deseja que ela aceite ir para a Palestina (Israel ainda não havia sido criado). Contudo, Nelly só pensa em reencontrar o marido, Johnny, também músico, e vaga pelas ruas à noite, adentrando os cabarés em busca do homem que ama.



Numa das casas noturnas, apropriadamente chamada Phoenix (tal como na lenda do pássaro que ressuscita), ela finalmente encontrará o marido, mas ele não a reconhece. Johnny acha a mulher parecida com Nelly, mas para ele não há dúvidas de que a esposa está morta. Enquanto Nelly busca coragem para fazer com que o marido acredite ser ela de fato, Johnny arma um plano para que ela finja ser sua esposa, apenas para ganhar uma indenização do novo governo. 

Aos poucos, Nelly se vê morando com o marido e disposta a aceitar o plano de Johnny, apenas para estar perto dele. Alimenta a esperança, sem sucesso, de que o marido caia em si e a reconheça, mesmo com outro rosto. Pior, há indícios de que Johnny teve alguma culpa em relação ao atentado que a desfigurou. Mas Nelly resiste a esse pensamento. Quer voltar àquela antiga vida junto ao homem que acredita amar.

Pausa para falar de Weil e sua obra. Compositor judeu e alemão, ficou famoso por suas canções e pela sua parceria com o dramaturgo Bertold Brecht, como a "Ópera dos três vinténs". Com a ascensão do nazismo, emigra para os Estados Unidos, onde irá compor músicas que serão letradas agora em inglês, por parceiros americanos. "Speak low" é uma parceria com o letrista Ogden Nash, composta originalmente para o musical da Broadway "A touch of Venus".  

Com o tempo, o musical não passaria de uma nota de rodapé na história da Broadway, mas "Speak Low" se tornaria um clássico. Logo, aquela melodia sinuosa  elegante, com uma letra em que as palavras "low" e "love" caminham juntas, num crescendo de intimidade entre um casal ("Speak low, when you speak low, our moment is swift, like shifts adrift were swept apart") seria gravada por inúmeros cantores, como Billie Holiday, Tony Bennett, Ella Fitzgerald, além de grandes do jazz instrumental. A primeira vez em que eu ouvi "Speak Low"foi na voz de uma brasileira, Marisa Monte, em 1989. Era a última faixa do primeiro disco de Marisa, meio obscurecida no LP após o megasucesso de "Bem que se quis", mas bonita o bastante pra não passar desapercebida. 

"Speak low", enfim, é uma música sobre amantes que sabem que dependem do tempo para amar. O tempo é tão velho, e o amor é tão leve; o amor é ouro puro, e o tempo é um ladrão, susurra a letra. Ao desistir de emigrar para a Palestina, Nelly encontra forças nesta canção, que a faz reincorporar sua porção cantora. E é também o clássico de Weil que iluminará o clímax do filme - a cena final.

O plano de Johnny, aparentemente, dá certo, mas o casal tem que fingir para amigos e parentes que Nelly realmente havia sido resgatada, e somente agora iria ao encontro de seu grande amor. Há a chegada na estação de trem, diante de amigos, onde o casal representa um reencontro, com poucas palavras. Há a ida à casa de um deles, onde, após um jantar, pedem para Nelly cantar, acompanhada ao piano por Johnny.

E então...Nelly escolhe cantar "Speak low".

Ela caminha lentamente para a frente do piano, onde Johnny já está sentado. Johnny toca os primeiros acordes. Nelly, nervosa, mas segura, inicia os versos iniciais da canção. Alguns dos presentes estranham a tensão presente entre os dois músicos. Súbito, através do canto de Nelly, Johnny para de tocar. Parece finalmente perceber não estar diante de uma impostora. Ele olha para a mulher e parece perceber tudo. Seria ela a Nelly verdadeira?

Não. A Nelly de antes da guerra não existe mais. Morreu, e tal qual a fênix, ressuscitou com um novo rosto e uma nova identidade. Finalmente a máscara impostora do marido cai, enquanto Nelly, lentamente, deixa a sala, o piano e as pessoas ali presentes. Sai para viver sua nova vida

Alguns dias antes de assistir ao filme, vi num programa de televisão um comentarista falar: "após a cena final de 'Phoenix', você nunca mais escutará determinada canção da mesma forma".

Ele estava certo. E lembre-se: quando escutar de novo aquela canção, speak low.












sexta-feira, 17 de julho de 2015

Bourbon Paraty Festival ou O diabo na carne de Miss Jones

Meio do ano chegando, comecei a receber informações sobre a FLIP, o maior e mais conhecido evento literário do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil. Acabei não indo, depois de alguns anos comparecendo sempre, mas não fiquei chateado. Isso porque em recentemente outro evento me fez visitar a cidade: o Bourbon Paraty Festival, dedicado à música, em especial o blues, o soul e o jazz.

Na verdade, o que me fez viajar quatro horas de carro para Paraty numa sexta-feira de maio foi apenas uma atração em especial: a grande estrela da soul music, miss Sharon Jones.

O Bourbon costuma espalhar suas atrações por palcos e ruas da cidade, em especial seu belíssimo centro histórico. Há o palco da Matriz, o maior de todos e responsável pelas mais esperadas atrações. Ha também o palco Santa Rita, em frente à igreja de Santa Rita e que recebia as atrações da tarde. E, last but not least, as deliciosas atrações de rua, como a Orleans Street Jazz, de São Paulo, que costuma atrair sempre um grande número de pessoas com seu som inspirado no jazz tradicional de Nova Orleans. Bem, não tão tradicional assim: os músicos paulistas levantaram a galera mesmo com sucessos pop de Tim Maia e Jorge Ben Jor, adaptados ao som do jazz. Uma delícia de ouvir.

As atrações são várias e muitas no mesmo horário, o que faz o fã de música ter que se decidir ali mesmo, na mesma hora, qual estilo de som ouvir e presenciar. Perdi Leo Gandelman e Torcuato Mariano no sábado á tarde, mas conferi meu amigo Jefferson Gonçalves, um dos melhores gaitistas de blues do Brasil - e o One Man Band Vasco Faé, músico que toca sozinho, nas ruas, bumbo, gaita, guitarra e ainda canta! Muito bom.

As atrações do Palco Matriz estiveram dentro do esperado. O guitarrista Mike Stern mostrou não ter sido por acaso que acompanhou monstros como Miles Davis. Muito simpático, levantou a galera com clássicos de Jimi Hendrix e músicas de sua safra. Destaque para o saxofonista gordinho Skinny (magrinho, em inglês). ou seja, boa música, simpatia e ironia nas doses certas. A sexta encerrou com as charmosas cantoras do Cluster Sisters, meninas que já haviam chamado a atenção na primeira edição do programa Superstar, da Globo, ao cantar um jazz inspirado no swing das big bands dos anos 30 e 40 do século passado.  

Mas o melhor ainda estava por vir...e chegaria no sábado à noite, após uma chuva intensa em Paraty: a ex-carcereira e talvez a maior cantora de soul da atualidade, miss Sharon Jones.

Quem achou que a galera se dispersaria após a chuva intensa, se enganou. Parecia que todo o sul fluminense estava naquela noite em Paraty. Encontramos com meu irmão e esposa, que moram em Angra, e a todo momento um deles apontava um conhecido...de Angra, cidade que fica a 1h30 de Paraty. O Palco Matriz ficou pequeno para receber tanta gente. Para chegar ao local da plateia, tive que desdobrar esforços e escapar de diversos empurrões e cotoveladas. Nada que não fosse recompensado pelo calor que emanou do palco após a entrada de Sharon.



O show começa com as duas ótimas backing vocals da cantora esquentando a plateia. Elas cantam acompanhadas dos Dap-Kings, a banda de apoio de Sharon Jones, só com músicos excelentes de blues e soul. Após três números, entra Sharon, de vestido azul, colar e sandálias de salto, os cabelos ainda curtos após o tratamento de quimioterapia realizado em 2014, que a livrou de um câncer. Com apenas dois minutos no palco ela já mostra a todos - eu já sabia - que valera a pena ter ido à Paraty.

No palco, Sharon é uma força da natureza. Ela não apenas canta muito bem, mas também dança vários números ao ritmo dos Dap-Kings. Em certo momento, Sharon começa a cantar um número mais acelerado. O público se anima. Ela então tira as sandálias e, descalça, dança como se estivesse com o diabo no corpo. Delírio na plateia.  Por mais duas vezes ela repetiria o gesto, sempre levando todos nós, que espremidos porém felizes, sentíamos que aquele vulcão no palco aos poucos nos arrebatava.

Em certo momento, mas calmo, Sharon começa a apresentar um por um os excelentes músicos dos Dap Kings, com direito a um solinho de cada um em seu instrumento. O baixista, que já anunciara a entrada de Sharon no palco e espécie de líder dos músicos, faz um gesto crítico, "mas pra quê?". A cantora olha-o rapidamente, faz um gesto de "aqui mando eu" e continua a apresentar os músicos. Apenas o momento para logo depois nos arrebatar novamente com seus números.

"I learn the hard way" é o nome de um dos sucessos de Sharon, e poderia funcionar bem como "cartão de visitas" da cantora. Nada foi fácil para esta diva negra que trabalhou em presídios, atingiu o sucesso tardiamente, teve um câncer quando suas músicas ameaçavam estourar, venceu a doença e volta agora aos palcos esfuziante e cantando como nunca. Um dia antes de viajar para Paraty, Sharon fez show no palco do Vivo Rio, no Aterro do Flamengo. Ao final, convocou as mulheres da plateia para subirem no palco e dançarem um sucesso de outra grande cantora: Tina Turner. Não foram poucos que se embriagaram com a performance da cantora. Na edição daquela semana do Ronca Ronca, Maurício Valladares, celebrava a espantosa performance de palco da cantora.

Pra quem duvida, uma história contada pela própria cantora, no Jornal da Globo da semana anterior a sua vinda ao Brasil. Certa vez, quando trabalhava num presídio repleto de prisioneiros perigosos, um homem perguntou-a o que ela fazia ali, naquele antro de marginais. "Sou cantora", respondeu. Ele então pediu que Sharon cantasse. Ali mesmo, na frente de um grupo grande criminosos, Sharon entoou um velho sucesso de Whitney Houston, "I will always love you". Aparentemente, sua performance na cadeia agradou. Um mês depois, quando uma rebelião implodiu e guardas foram feitos de reféns, o mesmo homem que a perguntara porque estava ali, não deixou que nada acontecesse com ela.

Fez bem. Se Sharon já entusiasmara um grupo de criminosos cantando a capella dentro de uma cadeia, imagine o que ela não é capaz de fazer num palco, com um microfone e uma ótima banda por trás. Alguns dos maiores cantores da chamada soul music, como Ray Charles, Sam Cooke e Aretha Franklin, souberam dosar libidinosamente o cantar gospel aprendido em igrejas negras dos Estados Unidos com os apelos profanos dos amores arrebatados, que exalavam luxúria em letras de forte conotação sexual, Sharon Jones é uma cantora que consegue juntar os dois mundos. Quando canta uma canção de amor, lembra uma diva negra com uma aura impenetrável. Quando tira as sandálias e, com os pés descalços, começa a se retorcer e dançar compulsivamente, liberta os demônios que uma vida difícil lhe trouxeram  


quinta-feira, 18 de junho de 2015

Essa música me lembra uma história: "Sinhá"

Dias atrás, num jantar entre amigos, alguém lembrou de uma grande música composta recentemente por Chico Buarque e João Bosco: Sinhá. Se não fosse a fragmentação causada pela internet e a consequente perda de força das rádios musicais, não tenho dúvidas de que que ela seria considerada aquilo que chamávamos anteriormente de "clássico instantâneo".

Sinhá é a última música do último disco de Chico Buarque, intitulado apenas "Chico".



A letra da música conta uma história passada no tempo dos engenhos, num Brasil marcado pela escravidão, este flagelo que nosso país pode se envergonhar de ter sido a última nação das Américas a abolir. Os versos de Chico poderiam poderiam muito bem estar numa passagem de Casa Grande e Senzala, o clássico livro de Gilberto Freire que nos fez deixar de ver a miscigenação como uma característica ruim do Brasil.

A música é uma conjunção muito bem feita entre o Chico Buarque ficcionista, autor de romances, e o músico, aqui em parceria com João Bosco, que faz o coro de "lamento" do negro preso e torturado, acusado de "olhar Sinhá" tomando banho. Atitude altamente punível, já que Sinhá era a mulher do dono da fazenda, o patriarca que mandava em todos.  

Mas nem tudo é o que parece. Ao longo da canção, temos o lamento do negro tentando argumentar que não fizera nada com Sinhá: Se a dona se despiu, Eu já andava além, Estava na moenda, Estava para Xerém. Frente à ameaça e a realidade de ter seu corpo talhado e os olhos perfurados por tão vil procedimento, o escravo chega a apelar para o deus cristão, rogando ao senhor que chora em iorubá, mas ora por Jesus. O senhor não se comove e ao escravo é tirada a luz: cegam-no.

Mas, uma ouvida mais atenta da canção suscita uma pergunta: será que o escravo realmente não fez nada com Sinhá?

Há dois anos, lecionei a disciplina Realidade Sócio-Política e Cultural Brasileira para alunos do curso de Publicidade e Propaganda da faculdade em que dou aulas. Certo dia, o tema da aula era justamente o livro de Gilberto Freire. Ao discorrer sobre o cotidiano das grandes fazendas brasileiras dos séculos XVII e XVIII, resolvi mostrar para a turma o vídeo postado aqui, com Chico Buarque e João Bosco interpretando "Sinhá". Mas a letra deveria vir junto. Então, após mostrar o vídeo à turma, discuti com a  turma a letra, falando que, na verdade, se prestarmos atenção, não fora o escravo que inadvertidamente "olhara" Sinhá. Mas sim ela, Sinhá, a mulher do todo-poderoso da fazenda, que ao olhar para o escravo ficara "excitadíssima".  Para abstrair-se da tentação, ela própria o denuncia. O escravo é pego e torturado até ficar cego.

Acabei a explicação e vi que muita gente estava embasbacada. Até que um garoto mais atrás comentou:

- Se a gente escreve essa palavra na sua prova [excitadíssima] você ia tirar pontos?

(Lembrei agora que, num país marcado pelo forte racismo como os Estados Unidos - em que até meados do século XX o casamento inter-racial era proibido - muitos negros foram perseguidos, presos e até linchados por brancos justamente pelo crime de "olharem" mulheres brancas. O fato inspirou o professor e poeta judeu Abel Meeropol a compor a canção Strange fruit, que se tornaria um dos principais clássicos do repertório de Billie Holyday. As "estranhas frutas" as quais se referia o poeta eram os corpos dos negros linchados, presos nos galhos de árvores na região sul daquele país).

Voltando à mesa com amigos. Uma amiga, psicóloga, sustentou que o escravo não só mexera com a libido de Sinhá, como eles teriam tido relações sexuais. Para expurgar seu "pecado", a própria sinhá o entrega ao dono do engenho...para ser torturado.

Um homem poderoso, o "feroz senhor do engenho", patriarca de uma sociedade machista e dono de tudo e de todos ali. Um homem que certamente não ia para cama apenas com Sinhá, mas com várias escravas, se considerarmos a descrição do cotidiano nas senzalas, segundo Freire. E que, possivelmente, a julgar pelos últimos versos da canção, teria torturado e cegado um de seus próprios filhos:

 E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

Espertamente, Chico e João Bosco não deixam claro na canção se Sinhá e o escravo chegaram às vias de fato. Apenas insinuam, deixando o resto com a imaginação de quem a ouve. A tragédia exposta na trama é saber que, durante o tempo da escravidão, não só ter relações sexuais proibidas, mas simplesmente olhar o corpo de alguém em condições hierárquicas superiores, era algo punível com a tortura ou mesmo a morte.




quinta-feira, 14 de maio de 2015

Pare o mundo que eu quero descer!!!

Dia desses eu e minha namorada estávamos vendo o programa de Serginho Groisman, temático sobre a axé music. A certa hora minha namorada faz um comentário sintomático: "Você notou que não chamaram o Luiz Caldas? Aquela música "Fricote" fez um sucesso danado!" poderia estar aqui, né mesmo?" Concordei, Em seguida ela mesmo continuou: "Se bem que aquela música era bem racista, né? E cantarolou os versos iniciais que diziam..."Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear". Rimos juntos. Ah, a praga do politicamente correto...

Semana passada, eu lia a coluna Gente Boa, do jornal Globo (29/04), a qual trazia traz duas notas sobre um problema no Rio de Janeiro envolvendo a música Fricote: "Música de Luiz Caldas gera discussão em festa". Veja o texto:

A música “Fricote”, de Luiz Caldas (“Nega do cabelo duro, que não gosta de pentear...”) provocou reação negativa em parte do público que estava numa festa, domingo, no Morro da Conceição. DJ convidado, Gustavo Calani foi abordado por pessoas que se sentiram ofendidas com a letra, considerada por elas racista e machista.
Gustavo não chegou a tocar a canção até o fim. “Interrompi para tentar conversar com o grupo, mas os ânimos estavam alterados”, contou. "Uma das meninas que veio falar comigo disse que eu não podia avaliar o que era racista ou não, por ser branco. Achei um ponto de vista forte e pertinente, mas não dava para ser debatido ali", completou.

Produtor de festas de black music, Julio Barroso considerou o episódio exagerado. “Eu, como negro, não me sinto nem um pouco ofendido. Se a música fosse do Bolsonaro, sim. Mas Luiz Caldas não é racista. É preciso analisar o contexto social em que essas obras foram feitas”, disse. “Nunca imaginei que o século 21 pudesse ser tão careta”.
Um dos organizadores da festa, o coletivo Quermesse pediu desculpas a quem se ofendeu com a música. “Desculpas, primeiro pela ofensa e, depois, pelo desgaste de terem que nos apontar o que já deveríamos saber”, escreveram na página do evento no Facebook.

Como este blog adora uma boa provocação, meu lado marginal se inclinaria a mandar essa turminha politicamente correta, que se alarma com uma simples música de carnaval baiano, plantar batatas (optei por uma ofensa bem leve, embora para alguns eu possa estar ofendendo o agricultor de batatas); enquanto meu lado conservador ficaria ao lado dos que reclamaram com tão importante questão numa festa de fim de semana. Ora, onde já se viu em 2015 uma música que faz chacota de pessoas negras e com cabelo duro, num país tão miscigenado como o Brasil?! Quem esse DJ pena que é?

Concordo com a frase do produtor de festas: nunca imaginei que o século 21 pudesse ser tão careta. O sucesso de Luiz Caldas nos anos 80 faz referência a outro sucesso, "Nega do cabelo duro" de , composto por David Nasser e Rubens Soares em 1942, um grande sucesso com o grupo Anjos do Inferno, que satirizava a moda feminina da época, de frisar os cabelos: "Quando tu entras na roda / O teu corpo serpenteia / Teu cabelo está na moda: / Qual é o pente que te penteia?"

A se ponderar o contexto de correção política de hoje, supõe-se que não só a música de Nasser e Soares seria rechaçado pelos patrulheiros de plantão como também o nome do grupo que a transformou num grande sucesso: Anjos do Inferno - onde já se viu? Ora, se até a cor vermelha do logo da novela "Babilônia", na Globo, teve de ser mudada para branca, sob pressão de grupos evangélicos, o que você acha que aconteceria hoje com grandes sucessos do rádio que tinham a liberdade de espinafrar o que fosse, e mesmo assim todo mundo cantava?

A continuar na patrulha do que é certo ou errado, não seria o caso de banir dos bailes de Carnaval o grande sucesso de Lamartine Babo e Irmãos Valença, "O teu cabelo não nega"? "O teu cabelo não nega/ mulata/ porque és mulata na cor/ mas como a cor não pega/ mulata quero o teu amor.” Até hoje, gerações de foliões continuam cantando a deliciosa marchinha.

Não seria também o caso de proibir a veiculação da engraçadíssima "Mulher indigesta", de Noel Rosa - "Ah, que mulher indigesta, merece um tijolo na testa!", por supostamente pregar a agressão contra as mulheres?



Ou de proibir os sambas de Martinho da Vila, já que ele compôs um samba intitulado "Você não passa de uma mulher", pra reclamar daquelas mulheres que estudavam e largavam a condição de meras donas de casa, Como pode isso, em pleno século 21?

O produtor tem razão: tudo está muito mais careta. Pare o mundo que eu quero descer!

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ainda não viu "O mensageiro"? Pois corra atrás (ainda mais se for estudante de jornalismo!)

Imagine que você é um jornalista de um pequeno jornal, íntegro, honesto e que acaba vislumbrando a chance de conseguir a reportagem de sua vida. Mas a história envolve o governo de seu  país, e é tão importante e sigilosa que pode acarretar grandes problemas para sua vida profissional e sua família. Você trava então o seguinte diálogo com uma fonte preciosa:

 - Vou apresentar você a pessoas com quem deveria conversar. E então, vai ter que encarar a decisão mais importante de sua vida.
- E qual é?
- Decidir se vai divulgar ou não.

O que você faria? O jornalista americano Gary Webb decidiu divulgar. Este passo lhe daria fama, mas , consequentemente, seria responsável por sua tragédia.

Esta história real virou filme estrelado por Jeremy Renner (o Gavião Arqueiro da franquia blockbuster "Os Vingadores", aqui tendo a chance de atuar de verdade), "O mensageiro". Depois de uma temporada nos cinemas brasileiros na qual não fez muito barulho nem obteve a repercussão merecida, o filme agora já está disponível em DVD, Blue Ray e em alguns canais de televisão pagos. É uma ótima chance para conferir a história real de um jornalista que ousou enfrentar a CIA e o governos dos Estados Unidos para realizar uma grande reportagem investigativa. E como este trabalho arruinaria sua vida para sempre.




O filme conta a história real de como o jornalista Gary Webb, repórter do pequeno San Jose Mercury News, da costa oeste dos Estados Unidos, ou seja, muito longe e aquém dos poderosos Washington Post ou New York Times, conseguiu descobrir um poderoso esquema de tráfico de drogas envolvendo agentes da CIA e grupos contrários ao governo da Nicarágua. O esquema funcionava da seguinte forma: grandes quantidades de cocaína eram transportadas por avião para os Estados Unidos sob  a vista grossa do governo americano, enquanto armas faziam o caminho contrário, visando abastecer o grupo dos Contras, que o governo dos EUA apoiava.

O jornalista, mesmo ameaçado por agentes do governo, resolve publicar a reportagem, naturalmente explosiva, não só ligando a CIA aos contras nicaraguenses mas relacionando esta entrada das drogas em solo americano com a complacência do governo à epidemia de crack entre a comunidade negra nos anos 1990. Com o nome de "Dark alliance", a série de reportagens veio a público em 1996.

O que veio a seguir foi uma das maiores campanhas de difamação contra um jornalista levadas a cabo nas últimas décadas. Agentes chegam a descobrir uma ex-amante do jornalista, com quem Webb tivera um caso anos antes e seria a responsável pela mudança da família para a costa oeste. O assunto era privado entre Webb e a esposa, e quando o filho mais velho toma conhecimento o outrora bem-estar familiar entra em crise.

Diferente do Brasil, nos Estados Unidos um órgão de imprensa que esteja pronto para veicular uma reportagem explosiva - e que envolva algum caso de segurança nacional - deve antes mostrar seu conteúdo para determinados órgãos governamentais, que farão tudo para impedir ou no mínimo amenizar o conteúdo dos fatos a serem divulgados. Webb é ameaçado. Seu jornal compra a briga e fura toda a grande mídia americana com a série de reportagens. A princípio, Webb é agraciado em casa e entre seus pares, mas a pressão governamental é tão grande que aos poucos seu jornal acaba cedendo às pressões. Webb é obrigado a se mudar para uma sucursal de seu jornal numa cidade menor, com assuntos menores e jornalistas em fim de carreira. Longe da família e dos assuntos mais "quentes", o repórter entra em crise.

Pra completar o cerco, o governo salienta que Web teria inventado tudo. A fonte misteriosa na Nicarágua, que teria tido o diálogo sobre publicar ou não a matéria, desaparece. Fontes preciosas começam a negar terem passado dados importantes ao repórter. Grandes jornais americanos, como o Los Angeles Times, ainda irritados por terem sido furados por um jornal de abrangência regional, sugerem ter Webb inventado alguns fatos. E aí se descobre o único grande erro do jornalista: não ter gravado todas as entrevistas com suas fontes.  

Na verdade, podemos analisar o filme como uma grande questão ética: até que ponto estaríamos dispostos a arriscar não só nossa vida profissional como também nossa própria família e amigos para ir em frente contra forças poderosas?

Webb escolheu ir em frente. Ao receber o prêmio de Jornalista do Ano, o jornalista faz um discurso muito mais de desagravo à profissão do que de agradecimento. Neste mesmo dia ele pediria a demissão do jornal em que publicara as reportagens:

Achei que meu trabalho era contar ao público a verdade. Os fatos, fossem ou não bonitos.E com a publicação, fazer a diferença no modo de as pessoas olharem as coisas, a si mesmas e o que elas defendem. 

Em 10 de dezembro de 2004, o jornalista foi encontrado morto na garagem de sua casa. O motivo da morte: suicídio.
















terça-feira, 14 de abril de 2015

Brasil: ame-o ou deixe-o (ou "O país do jeitinho")

Aconteceu na semana passada. Ou foi na retrasada? Na verdade situações como a que vou relatar acontecem, infelizmente, todos os dias no Brasil. E mostram um pouco desta realidade em que vivemos.

Tratava-se de um jogo de futebol. Norte do Brasil. Campeonato Amazonense. Nacional Borbense X Iranduba. No final da partida, o goleiro do Borbense é atingido e cai em campo, desacordado, O jogo é paralisado. Chamam a ambulância.

O motorista estava dormindo.

Acordam o homem. O corpo do jogador inerte é colocado no veículo. O motorista tenta dar a partida. A ambulância está enguiçada. Jogadores dos dois times mais comissões técnicas se mobilizam para dar um "tranco" no veículo.

A ambulância não pega. Nem no tranco.

A polícia é acionada. Confusão geral. Radialistas narram o incidente. Felizmente, a viatura policial está funcionando.

O jogador desacordado segue para o hospital no carro de polícia. Ou melhor, na caçamba do carro de polícia. Ele passa bem.

Situações como essa deveriam ser raras. Mas não é o caso em nosso país.  Na página do Google onde encontrei o link deste caso há outros similares.

Soube do caso ao ver a matéria no Globo Esporte. Fico imaginando o escândalo que seria se o problema tivesse acontecido numa partida de transmissão nacional. A imprensa faria vários artigos sobre a situação "revoltante" dos campeonatos e da falta de infraestrutura em estádios superfaturados para a Copa do Mundo. Políticos tentariam aparecer sugerindo novas leis para os campeonatos. Dirigentes de federações dariam entrevistas se dizendo "indignados" e que seriam tomadas providências incisivas para melhorar o atendimento em casos como o ocorrido.

Até que outro campeonato venha, outro clássico regional seja jogado e o episódio esquecido. Apenas para outro acontecer em outra localidade deste país continental e desigual.

Enquanto isso, os campeonatos não podem parar: afinal, o futebol é a paixão nacional! E em casos como esse, pode-se sempre dar um jeitinho, não é mesmo?  Nem que seja carregar um jogador passando mal na caçamba de uma viatura  policial...

Como diria um velho jornal alternativo nos anos 1970, em resposta a um bordão ufanista da ditadura, "Brasil, ame-o ou deixe-o":

- O último a sair apague a luz! 




quinta-feira, 19 de março de 2015

Samuel Fuller e o cinema: "Em uma palavra: emoção"

Difícil imaginar cena de abertura tão impactante. Uma mulher, num acesso de fúria, entra numa casa agredindo violentamente um homem com golpes desferidos por um sapato feminino. O homem está bêbado e suas tentativas de reagir são inúteis. A certa altura, ele puxa o cabelo da mulher e descobrimos que ela é totalmente careca. Ela não se inibe e continua golpeando o homem. Ao fundo, um som de jazz bem acelerado. O homem vai ao chão. A mulher, então, arranca dos bolsos dele uma quantia de dólares e diz ao homem que só vai levar o que ele a deve. Pouco depois, o homem está inerte no chão. A mulher prosta-se em frente a um espelho, recoloca a peruca e começa a se realinhar. Aos poucos, começam a surgir os créditos do filme. O título: "The naked kiss". Seu autor: Samuel Fuller.




No Brasil, "The naked kiss" ganhou o título "O beijo amargo". O filme é de 1964 e consta do lançamento "A arte de Samuel Fuller", uma caixa de quatro DVDs da Versátil, Além de "O beijo amargo", há também o cultuado "Paixões que alucinam" ("Shock corridor"), além dos menos conhecidos "O quimono escarlate" e "Casa de bambu". E um documentário sobre Fuller com depoimentos de gente como Tarantino e Martin Scorsese.

Fuller começou sua carreira como jornalista, bem cedo, aos 17 anos. Escreveu novelas pulp e mais tarde, lutou na Segunda Guerra Mundial pelo exército americano, conflito que o marcaria e que mais tarde seria mostrado em obras como "Agonia e Glória". Começou no cinema como roteirista, até estrear na direção em 1949, com "Eu matei Jesse James". Em 1982, realizou um dos maiores filmes sobre a questão do racismo, "Cão branco", a história de um cão que é adestrado pelo seu dono racista a odiar negros. O filme, apesar de ótimo, foi rechaçado pela própria produtora, Paramount, com medo de seu potencial polêmico, e lançado de maneira independente, arrecadando muito pouco. Este foi um dos motivos de Fuller sair dos EUA e terminar sua carreira na Europa, para onde se mudou nos anos 80.Seu último filme seria "Uma rua sem volta", em 1989. Fuller morreria em outubro de 1997, aos 85 anos.

Mas por que Fuller é hoje um cineasta cultuado por não só fãs de cinema mas diretores famosos? Talvez seja sua direção criativa e impactante, além da atração pela vida real, sem artifícios hollywoodianos para vender emoções baratas a uma plateia acostumada com o escapismo insosso de tantos filmes. Como em "O beijo amargo", que retrata a trajetória de uma ex-prostituta e stripper, que, para fugir do seu passado, viaja para uma cidadezinha onde ninguém a conhece.

O local é, à primeira vista, uma idílica e tranquila cidade repleta de indivíduos típicos das pequenas cidades americanas nos anos 1960. Afáveis, generosos, e dispostos a ajudá-la. O local perfeito, pensa Kelly, a ex-prostituta interpretada de forma magistral por Constance Towers.

Mas nem tudo ali é perfeito. Aos poucos, Kelly, que consegue emprego como enfermeira numa clínica de crianças com deficiência nas pernas, descobrirá que o futuro tranquilo que almejava não seria tão fácil de encontrar. As pessoas que pareciam tão bem dispostas a aceitá-la aos poucos começam a demonstrar a inveja, ciúme, insegurança e violência. A pequena cidade, enfim, revela-se como mais um microcosmo de uma sociedade irremediavelmente humana. Um filme, enfim, adulto como poucos hoje em dia.

Uma das frases mais famosas de Samuel Fuller foi quando ele buscou definir seu ofício:

"Um filme é um campo de batalha. É amor, ódio, ação, violência, morte. Em uma palavra: emoção"



sábado, 28 de fevereiro de 2015

Lides imperdíveis: Charles Dickens e o homem guilhotinado

Um assunto recente foi motivo de controvérsia no Brasil: a execução de um brasileiro, por tráfico de drogas, na Indonésia. Marco Asher tinha 53 anos e fora preso em 2004, ao entrar entrar naquele país com 13 quilos de cocaína escondidos nos tubos e uma asa delta. Após a droga ter sido descoberta pelo raio-X do aeroporto, o brasileiro ainda conseguiu fugir, mas acabou preso novamente 12 dias depois. No dia 18 de janeiro de 2015, Marcos foi executado pelo pelotão de fuzilamento.

De nada adiantaram os inúmeros pedidos de clemência do governo brasileiro. Após a execução, a presidente Dilma Rousseff se mostrou "consternada e indignada" com o episódio. Há poucos dias, a situação diplomática entre os dois países piorou bastante, após o governo brasileiro ter decidido adiar as credenciais do embaixador da Indonésia em Brasília - ato que representaria o começo das atividades do estado indonésio no Brasil, O governo indonésio considerou o ato uma hostilidade e mandou seu embaixador voltar. Para muitos analistas de política internacional, foi um péssimo ato da diplomacia brasileira, pois ainda há outro brasileiro no corredor da morte na Indonésia.

A execução de estrangeiros em determinados países que ainda possuem pena de morte é hoje um ato que, como no caso brasileiro, pode levar a incidentes diplomáticos entre os países envolvidos. Mas  houve tempo em que execuções de criminosos eram comuns e reuniam muita gente em praça pública para testemunhar o fato. Em  1845, Charles Dickens, que além de grande escritor também trabalhou por toda a sua vida - com intervalos mais ou menos esparsos - como jornalista, esteve na Itália, onde presenciou um homem ser guilhotinado. Este episódio marca a volta da série "lides imperdíveis", para a qual transcrevo o primeiro parágrafo da reportagem "Um homem é guilhotinado em Roma". Em apenas um parágrafo, Dickens reconstitui o crime bárbaro que motivaria a pena de morte, com um vigor de escrita que poderia facilmente ser tema de um conto ou romance:

"Numa manhã de sábado (8 de março), um homem foi decapitado aqui. Nove ou dez meses antes, ele assaltara na estrada uma condessa bávara que viajava como peregrina à Roma - sozinha e a pé, por certo - e fazia, diz-se, este ato de devoção pela quarta vez. O homem a viu trocar uma peça de outo em Viterbo, onde ela morava; seguiu-a; fez-lhe companhia na viagem por uns 64 quilômetros ou mais, sob o traiçoeiro pretexto de protegê-la; atacou-a, no cumprimento de seu implacável propósito, na Campagna, a muito pouca distância de Roma, perto do que se chama (mas não é) o Túmulo de Nero, roubou-a e espancou-a até a morte com o cajado da própria peregrina. Era recém-casado, e deu algumas das roupas da vítima à esposa, dizendo que comprara numa feira. Ela, porém, que vira a peregrina passando pela cidade, reconheceu algum detalhe como pertencente à condessa. O marido então disse-lhe o que havia feito. Ela, em confissão, contou a um padre; e o homem foi preso, quatro dias depois de ter cometido o assassinato." 







,


sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Quando seu ídolo aparece de surpresa...

Imagine a cena. É noite e você decide ir à Lapa, bairro boêmio do centro do Rio de Janeiro, para relaxar, tomar uma cerveja, encontrar os amigos e, quem sabe, ouvir um samba de qualidade. Você escolhe o bar, se acomoda numa boa mesa e logo depois a banda começa a tocar. Perto de você, há um senhor que lembra alguém conhecido - sua namorada comenta ser "a cara do Chico Buarque". Você ri e pensa, e se fosse mesmo ele? Quase ao final da primeira parte do show, o vocalista diz ao público que há uma presença ilustre na plateia e que, veja só, havia pedido para "cantar uma musiquinha". Você não acredita no que vê: Chico Buarque, em pessoa, levanta e canta três músicas, para delírio da plateia. Ao fundo, um gaiato grita: "Foi o couvert mais bem pago da minha vida!"




Soube da notícia lendo os posts do facebook. Na quarta-feira, o fato saiu publicado na coluna Gente Boa, do jornal O Globo. Sintomático: não é todo dia que vemos Chico Buarque em pessoa dando canjas na cidade. Inspirado pela leitura e pelo post anterior, sobre as escapadas de Cássia Eller para cantar de surpresa em lugares totalmente inusitados, comecei a imaginar os momentos de minha vida em que algum cantor apareceu de surpresa em outro show no qual estava presente apenas como público ou para prestigiar o colega no palco e, então...acabavam participando do show. 

Lembro que uma das lembranças mais antigas que tenho com relação a espetáculos musicais aconteceu quando eu ainda era adolescente, num do Caetano na Praça da Apoteose, aqui no Rio. Era o começo dos anos 1980, época de eleições para governador. O show era para lançar o disco "Totalmente demais", um grande sucesso nas rádios, puxado pela música título, de Arnaldo Brandão, e demais sucessos e versões cantados exclusivamente no formato voz e violão.

Sim, um show voz e violão em plena Apoteose, acostumada a receber os desfiles do Carnaval carioca. Mas realmente houve esse espetáculo, e o público compareceu em massa. Foi interessante quando, logo no começo do show, a um pedido do cantor, o público da pista - em pé - sentou no chão para ouvir e cantar junto os sucessos do compositor baiano e clássicos da música brasileira. A certa altura do espetáculo, Caetano elogiou a cantora argentina Mercedes Sosa, que estava na cidade para alguns shows que faria no Canecão, e disse, daquele jeito como quem não quer nada..."Ela está aqui". A plateia se alvoroçou. O cantor então continuou:

- Não só a Mercedes, mas Chico Buarque e Milton Nascimento também estão assistindo ao show,,,

Foi o bastante para o pequeno alvoroço virar um barulho infernal, com gritos de "Mercedes!", "Chico!", Milton!", enquanto Caetano ria do alto do palco. Foi então que ele olhou para os bastidores e, para surpresa de todos, entram Chico Buarque, Milton Nascimento e Mercedes Sosa. No palco, o quarteto cantou um dos maiores clássicos de Mercedes, "volver a los 17". Foi o momento mais aplaudido da noite.

Outro momento em que um ilustre convidado apareceu de repente foi num show de Gilberto Gil na praia de Copacabana. Era um fim de semana e eu havia ido ao show com um amigo. Lá pelas tantas, Gil diz que vai chamar um amigo ao palco para dar uma canja. Eis que surge no palco Sting, que também estava no Brasil para shows da Anistia Internacional em São Paulo e resolvera dar uma esticada no Rio. Naquela noite, para deleite da plateia, Sting cantou dois clássicos do Police: "Message in a bottle" e "Roxanne". Em plena praia de Copacabana, num sábado à noite.  

Por último, e o mais inusitado de todos, aconteceu numa noite doa anos 1990 na pequena localidade de Vilatur, cidade espremida entre Bacaxá e Araruama, na Região dos Lagos carioca. Quando estava casado, eu ia muito lá, pois meus ex-sogros tinham uma casa de veraneio lá. Não era uma cidade das mais concorridas. pra falar a verdade, mesmo muitos cariocas jamais ouviram falar em Vilatur - era daquelas localidades com apenas uma padaria, uma farmácia, três ou quatro bares para se distrair à noite e pouca coisa mais. Ah, e uma praia quase tão linda quanto perigosa.

Foi num fim de semana que descobrimos que haveria música ao vivo num dos bares da região. Como não era algo comum, fomos conferir. Sim, realmente havia naquela noite uma banda se apresentando. O repertório era quase todo de samba e pagodes. Sentamo-nos e pedi uma cerveja, satisfeito por ter, enfim, algo para se fazer naquele local. De repente, a banda começa a tocar um clássico conhecido pela voz de Elis Regina: "O bêbado e o equilibrista". Ao som dos primeiros acordes, um senhor de meia idade com cara de farmacêutico e cabelos grisalhos quase brancos, assume o microfone e começa a cantar o clássico, com uma voz rouca de cerveja mas razoavelmente afinado. 

Prestei mais atenção e quase não acreditei.Sim, era ele mesmo, Aldir Blanc, autor da letra da música composta em parceria com João Bosco. Ao contrário dos dois casos anteriores, ninguém da plateia de pinguços pareceu notar que ali, naquele quase fim de mundo, se apresentava o autor de um dos maiores clássicos da MPB. Quando acabou a música, aplausos protocolares, um ou outro mais exaltado, mas quase nenhuma diferença entre antes. Nem quando um dos rapazes da banda falou rapidamente, apontando para aquele senhor que acabara de cantar: "Vocês acabaram de ouvir Aldir Blanc, autor dessa música!". Muitos resolveram pedir mais uma cerveja e aguardar o próximo pagode. Enquanto eu me perguntava se o que acabara de ver tinha sido realidade ou não. Ao findar o show, tentei ver se Aldir continuava lá, mas ele já partira. Infelizmente, para a maioria dos presentes, ele era apenas mais um pinguço que, tal como Chico Buarque, pedira para "cantar uma musiquinha".



sábado, 7 de fevereiro de 2015

Som, fúria e...um pouco de ternura: Cássia Eller

Em janeiro de 2011, eu estava junto aos milhares de espectadores da terceira edição do Rock in Rio. Era o primeiro dia do festiva e quem abriria a noite era simplesmente Cássia Eller. O dia ainda estava claro quando Cássia adentrou o palco munida apenas de violão e começou  a cantar uma canção de Renato Russo, que dizia "sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher". Atrás dela, uma banda afiadíssima, com a participação do Nação Zumbi em algumas músicas. Mais atrás, escondido entre os instrumentos de percussão, estava o filho de Cássia, Chicão, com 6 anos e participando do show.
,
Menos de 40 minutos depois de um show arrasador e com a plateia já ganha, Cássia começa a cantar suavemente a letra de "Smells like teen spirit". Logo depois, o chão literalmenbte tremeu com o poderoso refrão do rock de Kurt Cobain e a animação da plateia. Confesso que não me lembro de ver tanta gente pulando e gritando a letra de um rock tão furiosamente como naquele grand finale do show. Nos bastidores, o ex-baterista do Nirvana Dave Grohl,\participando do festival com sua banda Foo Fighters, ficara embasbacado com a interpretação. Foi um dos maiores shows da história do Rock in Rio e uma das maiores performances de uma cantora em qualquer momento dos festivais de música no Brasil

Tudo isso está contado no filme "Cássia Eller", de Paulo Henrique Fontenelle, o mesmo do ótimo "Loki" (2008), sobre o eterno mutante Arnaldo Batista. O mais interessante do filme é mostrar como um menina bastante tímida, insegura, com dificuldades em relacionar-se com pessoas de qualquer ramo (mal conseguia dar entrevistas) se transformava num furacão quando estava no palco. Em mais de uma cena do filme, Cássia surge dizendo que cantar foi a salvação que ela encontrou para ser aceita socialmente e poder ser observada com mais atenção. No caso dela, cantar surgia muito mais do que uma vontade imperiosa, mas uma necessidade arrasadora de sentir-se livre. Cantar para viver, em qualquer palco, em qualquer canto. Para ela, pouco importava estar nos palcos luxuosos das grandes casas de espetáculo do sudeste ou, disfarçadamente, surgir de surpresa com cantora de uma bandinha feita às pressas, no palco de um forró pé-de-serra na cidade serrana de São Pedro da Serra, no Rio de Janeiro, para surpresa e deslumbre da plateia.

"Cássia Eller", o filme, conta a história desta grande cantora com rigor e bastante emoção, como nos momentos finais, ao mostrar a luta de sua companheira Maria Eugênia, pela guarda judicial de Chicão. Mas o que fica mesmo é a marca daquela que cantou de tudo enquanto esteve viva. Cássia faz muita falta no cenário de música brasileira atual, que parece ter encaretado desde então. Não perca.    








domingo, 1 de fevereiro de 2015

Meus papos com Tuco: esquentando os tamborins

Carnaval chegando, dúvida cruel. Que fantasia vestir? Não sou dos que planejam com detalhes qual será a fantasia para pular nas ruas ou na avenida durante o reinado de Momo. Quando criança, fui a bailes infantis fantasiado de índio, no melhor estilo "Cacique de Ramos". Na época o bloco era uma grande força carnavalesca no Rio e eu tinha tios que desfilavam sempre. Como eles frequentavam muito os ensaios, compravam roupas infantis do bloco para meu primos, eu e meu irmão. Nossa "tribo" se divertia muito naquela tardes carnavalescas.

Ah, as tardes carnavalescas dos anos 70. Era muito mais fácil arrumar uma fantasia para seu filho. Hoje, é tanta oferta de fantasia e tantos novos personagens, que até o diálogo com o filho é um pouco confuso.


- E aí, Tuco, já decidiu qual fantasia vai usar no carnaval?
- Pô, pai, nem sei se vou me fantasiar...
- Por que, filho?
- Esse ano passo com minha mãe...e lá em Vilatur quase não tem bloco.
- É verdade. Mas se quiser eu compro pra você a fantasia do Mario Bros.
- Nem pensar!
- Por quê?
- Não quero me fantasiar de Mário. prefiro jogar o game. Aquela roupa é meio ridícula...
- Rsrs. Isso eu também acho. Você não ia se fantasiar de Coringa?
- Estava querendo. Mas a dificuldade é a roupa. E o cabelo verde? Teria que pintar.
- Não é melhor usar uma máscara?
- Não ficaria tão legal, pai.
- Posso mandar a vovó comprar uma fantasia maneira no Saara...
- Não! Ano passado a vovó comprou a fantasia errada.
- Ah, sei. Sua ideia era se fantasiar de morte... Capa, máscara de caveira e foice. Ia ficar bem sinistro.
- Sim. Só que a vovó foi no Saara e comprou uma máscara de palhaço assassino e um tridente.
- Me lembro. Só acertou a capa...Pelo menos ficou uma fantasia original, rs
- Ah, pai, nem vem, rsrs.

Rimos juntos. Rir junto com o filho é uma das boas coisas de ser pai. Com ou sem fantasia.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Janeiro de 1985: 30 anos do Rock in Rio. Eu estava lá

Julho de 1984. Estou em casa folheando o JB quando leio na coluna do Zózimo uma notinha que me chamaria a atenção. Dizia mais ou menos assim:  "O empresário Roberto Medina, que já trouxe ao Brasil Frank Sinatra, prepara para janeiro do ano que vem um grande festival de rock no Rio de Janeiro. Grandes bandas estão sendo contatadas". Foi ali, pela primeira vez que eu ouvi falar do que viria a ser o Rock in Rio. Será mesmo?, pensei. A coluna do Zózimo era fértil em dar furos na concorrência, mas imaginar um "grande festival de rock" no Brasil, numa época em que shows internacionais eram raros (tivemos antes apenas alguns no Maracanãzinho, todos com aquela acústica péssima) só podia ser um sonho. Não me lembro se Zózimo antecipara o local - um imenso descampado em Jacarepaguá que nos dias de chuva, em especial nos dias reservados ao heavy metal, se tornaria um lamaçal - mas algumas semanas depois, a grande imprensa revelava o que o colunista antecipara. O Rock in Rio, de fato, iria acontecer.

Em janeiro de 1985, eu tinha 15 anos. Ia começar a cursar o segundo grau (naquela época não falávamos "ensino médio") e, pela primeira vez, eu iria a um grande festival de rock. Estava com meu irmão mais velho, um primo e amigos. Lembro que o percurso era insano: pegamos dois ônibus que totalizaram algumas horas para cruzar a cidade de Ramos até a longínqua "cidade do rock" (se hoje a Barra ainda é longe, imagine em 1985, sem as Linhas Amarela e Vermelha). Nada, porém, tirava nosso entusiamo. Era o primeiro dia e eu estava indo ver finalmente o Queen e o Iron Maiden ao vivo. Ainda era difícil de acreditar. Estar no Rock in Rio, naquele começo de ano, era como se eu estivesse recebendo um passaporte para a maturidade.

Quem conheceu apenas as últimas edições do festival, transformado num grande parte temático cheio de atrações como tirolesa, roda gigante, salão de beleza (!) e tudo o mais, onde "a música é só um detalhe", como disse Roberto Medina em uma entrevista ao Globo, não imagina como foi aquela primeira edição. Apesar do local imenso, a infra-estrutura era precária. A cerveja era a famigerada Malt 90, e estava sempre quente. Conseguir comprar um hambúrguer era uma luta árdua.Os banheiros logo ficaram imundos. O belo gramado, depois de alguns dias, virou lama. Mas relevávamos tudo. Queríamos mesmo era curtir o rock. E os shows não decepcionaram.
.
Eu fui em três dias: no primeiro, dia 11; no domingo, 13,; e no sábado seguinte, dia 19.  Ney Matogrosso abriu o festival com um ótimo show, mas logo depois foi triste ver a galera metaleira (que eram muitos, muitos mesmo) vaiando Erasmo Carlos logo depois. O show do Iron Maiden foi sensacional. E o Queen, fechando a noite, foi arrebatador. A banda estava em uma de suas melhores fases e foi arrepiante cantar junto com milhares de pessoas o clássico "Love of my life", Ao fim da extenuante noite, lembro das pessoas cansadas, mas felizes, indo pegar os ônibus. Na volta pra casa, havia gente dormindo até de pé nos coletivos lotados.



No dia 13 curti bastante as atrações nacionais. Paralamas, Lulu Santos e a Blitz fizeram três ótimos shows, com destaque para a falta de cenário dos Paralamas, que improvisaram uns enfeites do camarim no palco - cenário simples, show excelente. Mas o grande destaque desta noite foi mesmo Rod Stewart, que fez um dos melhores show de toda a história do festival. Se no Queen eu estava tão espremido na multidão que mal conseguia me mexer, no show de Rod deu pra dançar o tempo todo, e nem a chuva que caiu no meio da apresentação diminuiu a animação da galera. Ainda me lembro de dançar sem parar ao som do clássico de Sam Cooke, "Twisting the night away" e vários hits de Rod, que pôs a plateia no bolso.



No sábado seguinte, dia destinado às bandas de heavy metal, a chuva caiu forte, Mas a galera não desanimou. Aliás, que eu me lembre, nenhuma das demais edições do festival conseguiu reunir um dia tão bom. Ver Whitesnake, Scorpions, Ozzy Osbourne e o AC/DC foi realmente uma experiência única. Temendo nova vaia a Erasmo Carlos, a produção o tirou deste dia, mas manteve Pepeu Gomes e Baby Consuelo, que encararam a intolerância quase fundamentalista dos fãs de heavy metal com um showzaço. Antes que os fãs do rock pesado começassem a vaiar, Pepeu Gomes deu um solo a la Jimi Hendrix, Depois, junto com Baby, levaram um versão arrasa-quarteirão do clássico "Brasileirinho"', deixando os radicais de boca aberta. Recentemente vi numa entrevista para a TV Baby contando que contratou um grupo de seguranças para impedir que os outros seguranças do festival desligassem o som ou mandassem terminar o show antes dos 40 minutos previstos.A tática, pelo visto, deu certo.

Sim estive em apenas três noites, mas foram três noites que jamais vou esquecer. Depois do primeiro Rock in Rio, finalmente o Brasil começou a receber mais astros do rock internacional. Os grandes grupos haviam descoberto o Brasil. E o festival fora o responsável.    




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Somos todos Charlie - humor x fanatismo

O atentado terrorista contra a redação do jornal francês Charlie Hebdo me fez lembrar de uma aula que dei na faculdade de comunicação há pouco mais de dois anos. A disciplina era Cultura das Mídias e o tema da aula, a cultura do politicamente correto. Em determinado momento, a fim de explicar a influência do politicamente correto no humor, recorri a um vídeo do Felipe Neto e seu "Não faz sentido". Na época Felipe já tinha um bom séquito de fãs na web, com seus ácidos comentários no Youtube sobre vários temas. Assim, boa parte da turma se empolgou com o que veria a seguir.

O vídeo começa e Felipe logo avisa que fez uma seleção piadas de humor "refinado", com "compromisso social", que "não ofendem ninguém". Pausa. Entra uma música clássica de fundo e Felipe fica um minuto inteiro sem falar absolutamente nada. Ou tentando falar, mas sem encontrar algo a dizer. Na sala de aula, observo alunos perplexos que esperam a piada, que não vem em momento algum. Ao final do vídeo, Felipe sai de cena e entra a legenda: "Nenhuma minoria foi ofendida nestes 60 segundos",





Curiosamente, acompanhando a repercussão no Brasil sobre a tragédia francesa, encontrei um artigo muito bom de Allan Sieber (escrito especialmente para o blog do Andre Barcinski), sobre um debate que tomou a França há alguns anos, sobre os limites do humor. Na época, o Charlie Hebdo chegou às bancas de todo o país com a manchete "Um jornal responsável",  Segundo Sieber, "dentro só tinha as legendas dos cartuns, o resto era TUDO branco. Nunca ninguém teve a manha de fazer um jornal mais chapa branca que esse".




Poderíamos dizer que os cartunistas do Charlie Hebdo sabiam que não existe essa história de "humor responsável". A corrente ideológica do "politicamente correto" surgiu nos EUA durante os anos 1980 e se alastrou como uma praga em boa parte do mundo ocidental. De repente nos vimos obrigados a rever nossos conceitos sobre toda forma de minorias que por séculos foram difamadas, exploradas, humilhadas, sacaneadas, ironizadas, tornando-se, em grande parte, alvo de piadas, do humor que é parte da sociedade. Claro que a ideia inicial era boa ( quantas vezes não ouvimos a expressão "não judia dele não", sem atentar que na verdade estávamos denegrindo os judeus?), mas aos poucos a corrente se transformou numa grande patrulha transformada em correção política, e um grupo que foi muito agredido foi justamente o dos humoristas. De repente não era bom fazer piada nem com anões, que se transformaram dentro do linguajar politicamente correto em "verticalmente desfavorecidos"). Lendo os jornais a respeito das mortes dos cartunistas franceses, li algumas opiniões de leitores e até de intelectuais convidados a se expressarem dizendo que deveria haver um limite no humor. Alguns chegaram mesmo a dizer os cartunistas teriam exagerado, que aqui no Brasil ninguém gostaria de ver "os dogmas do catolicismo sendo ridicularizados"

(Bem, quanto a este último comentário, devo dizer que o autor está bastante desinformado. Sugiro a ele que entre no canal do "Porta do fundos" do youtube para ver alguns vídeos hilários sobre Jesus e os "dogmas do catolicismo". A despeito de alguns comentários indignados no próprio Youtube, até agora nenhum dos vídeos do grupo a satirizar o cristianismo, Deus ou Jesus foi proibido).

Quando o politicamente correto se mistura com o radicalismo, temos o fundamentalismo ou o fanatismo religioso, que acredita não haver espaço para a tolerância. Para um fanático, como estes que mataram os cartunistas franceses, não se pensa na alternativa mais civilizada que seria simplesmente ignorar o jornal. É preciso também assassinar aqueles que "profanaram" sua religião.

O grande escritor israelense Amós Oz escreveu em 2004 um pequeno grande livro chamado justamente "Contra o fanatismo".Eis um pequeno trecho em que fala sobre o Oriente Médio, mas que poderia muito bem definir o fanatismo no mundo inteiro::

"A crise atual no mundo - no Oriente Médio, em Israel e na Plestina - não diz respeito, de jeito algum, à mentalidade dos árabes, como querem alguns racistas.Diz respeito à luta antiga entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerância. O 11 de setembro não tem a ver nem mesmo com a questão de se a América é boa ou má, se o capitalismo é ameaçador ou transparente, se a globalização deveria cessar ou não. Diz respeito, isto sim, à reivindicação típica dos fanáticos: se julgo algo mau, elimino-o, junto com seus vizinhos. O fanatismo é mais antigo que o Islã, mais velho que o Cristianismo, que o  Judaísmo, que qualquer estado, governo ou sistema político, que qualquer ideologia ou fé no mundo,  O fanatismo é, infelizmente, um componente onipresente da natureza humana, um gene do mal, se quiserem chamá-lo desta forma. Pessoas que explodem clínicas de aborto nos Estados Unidos, que queimam mesquitas e sinagogas aqui ou na Alemanha, diferem de Bin Laden apenas em escala, mas não na natureza de seus crimes,"

O pior que poderia acontecer com relação ao assassinato dos jornalistas franceses seria considerar aquilo como algo isolado. De fato, cheguei a ler uma postagem do Facebook onde um amigo escreveu "viva o Brasil, que está longe de ter massacres iguais ao que aconteceu na França".  Bem, devemos tomar cuidado com afirmações como essa. O Brasil ainda é um dos países que mais matam jornalistas. Ainda é um local em que pessoas pobres são diariamente assassinadas nas grandes favelas. Ainda é um país onde um universitário é assassinado na entrada da faculdade por motivos banais. Em que evangélicos fundamentalistas não escondem nas redes sociais sua satisfação e ainda ameaçam aqueles que fazem humor com passagens da Bíblia. São todos casos de intolerância e desprezo à vida humana, mas que não tiveram a mesma repercussão que as mortes francesas.  

A solidariedade mundial mostrada nos últimos dias mostra que devemos considerar o crime ao jornal francês como um crime contra todos nós. Contra a civilização, a liberdade de expressão e a tolerância humana. Talvez Voltaire não imaginasse o quanto ele fez pela liberdade de expressão ao dizer para um crítico: "não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de fazê-lo".

Um dos assassinos dos cartunistas franceses chegou a dizer que não se importava em virar um mártir da causa contra o Islã. Enganou-se. A solidariedade mundial que se seguiu à tragédia francesa mostra que na verdade eles conseguiram criar milhares de adeptos á causa da liberdade de expressão. Na semana que vem, um número especial de Charlie Hebdo - que se encontrava em crise financeira - sairá com a tiragem inédita de 1 milhão de exemplares, com boa parte da renda destinada ás famílias das vítimas. Ou seja, Charlie vive.

Que o humor não morra jamais. Je suis Charlie. Somos todos Charlie.






sábado, 3 de janeiro de 2015

O que vi, ouvi e li de bom em 2014 – Parte 2


Continuando a postagem anterior, sigo em frente com um pequeno apanhado sobre o que mais curti em matéria de cultura em 2014. Na música, pra variar, pouco tempo pra escutar tanta coisa boa. Sim, pois quem gosta de música hoje vive o paradoxo de ver um mercado fonográfico preso a fórmulas ainda ligadas ao mainstream (é curioso perceber como uma produção musical tão diversificada como a brasileira seja refletida nas rádios a partir do monopólio atual de um ou dois ritmos, como o sertanejo universitário e o pagode romântico), enquanto a indústria, ainda em crise com os downloads ilegais, segue aos poucos apostando no ainda incerto meio digital. Há hoje opções que vão muito além do rádio e TV, como o iTunes, as rádios de streaming musical, o youtube etc. É só saber procurar e ter olhos e ouvidos bem abertos.

Quem procurar, encontrará na web ótimos programas. podcasts de sites em que muita boa música é mostrada., Destaco, como sempre, o Ronca Ronca de Maurício Valladares, há mais de 30 anos seguindo no rádio (ou melhor, em diversas rádios) mostrando o melhor da produção musical pop do planeta, sem preconceitos. Afinal, onde mais escutar novidades da música africana, gemas do pop latino, pérolas do rock das antigas e artistas que acabaram de lançar seu último disco, tudo no mesmo programa? Difícil achar. E ainda apostei com prazer na Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, com ótimos podcasts de grandes artistas. Só a pesquisa para o programa sobre Cole Porte, apresentado por João Máximo, valeria a ouvida. Pra quem curte rock e boas histórias, a série sobre o rock brasileiro apresentada por Joaquim Ferreira dos Santos e Arthur Dapieve, referências para este blog, é imperdível Enjoy it, may friends!

Se a música de 2013 foi "Get Lucky", do Daft Punk, creio não restar dúvidas que nenhuma outra foi tão tocada, repetida, assimilada, copiada como "Happy", de Pharrell Williams. Nota-se que uma música virou um clássico quando ela extrapola os limites da esfera estritamente musical. "Happy" foi parar em comerciais de todos os tipos e até em mensagem de fim de ano de televisão foi copiada. Talvez, em tempos de tanto ódio nas redes sociais e culto ao individualismo via selfies, a canção de Williams tenha funcionado como um bem-vindo bálsamo de alegria. E nos estertores de 2013, encontro outra música tão irresistível quanto "Happy". Conferindo o blog de André Forastieri (um dos que acompanho sempre, junto ao seu xará André Barcinski), leio e ouço o que ele clama como a música do verão: "Uptown funk", de Mark Ronson e Bruno Mars. Difícil ouvir parado. Aliás, não troco um Bruno Mars por dez cantores/as pseudo-rebeldes que gostam de aparecer e que são insistentemente convidados para tovcar no brasil. Alô Medina, queremos Bruno Mars no Rock in Rio já! 


Quanto aos álbuns lançados, houve tempo (pouco, é claro) para curtir "Vista pro mar", do capixaba Silva, uma das boas surpresas do pop nacional. Mas a melhor de todas talvez tenha sido o álbum de estreia da Banda do Mar, projeto de Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e o português Fred. Foi um ano também em que grandes cantoras lançaram ótimos álbuns. As rádios quase não tocaram o segundo e melhor álbum de Alice Caymmi, o sensacional "Rainha dos raios", e também o dilacerante "Encarnado", de Juçara Marçal, cantora do Metá Metá. Quem? Ainda não ouviu? Pois corra para o youtube e confira o quanto você anda perdendo...


Por fim, os livros. Na área de não-ficção, li o excelente "A informação", de James Gleick (tb com atraso, pois o livro foi lançado em 2013). Uma história da busca pela comunicação e informação humanam dos tambores africanos aos faróis europeus, da invenção do transistor à teoria matemática da informação. Das primeiras máquinas de computar dados aos modernos computadores. Não por acaso, está já na minha lista de livros a serem lidos em 2014 o elogiado "Os inovadores", de Walter Isaacson, que acredito complementar a obra de Gleick - além, de é claro, me dar subsídios para as aulas de teorias de comunicação, rs.   

Na ficção, dois livros pouco comentados nos cadernos de cultura, mas que descobri através de dicas no Estúdio I, da Globonews (Alô, \Felipe Pena, obrigado!) e na lista de recomendados da Vea. O primeiro, "Oeste - a guerra do jogo do bicho", é um romance de ação incessante (coisa pouco comum na literatura brasileira) sobre a ascenção e queda de vários bicheiros importantes do Rio de Janeiro. Passado em grande parte na zona oeste da cidade, quem ouviu notícias sobre o império dos antigos "capos" do bicho, como Castor de Andrade, e Antonio Português va lembrar na hora de algumas passagens marcantes. Mais que puro entretenimento, o livro se detém na chegada ao negócio da contravenção das famosa máquinas caça-niqueis - vá em qualquer padaria carioca e veja se não há alguma no cantinho com algum viciado jogando. Ou seja, diverte e instrui. 



E, por último, aquele que ainda não acabei de ler, mas mesmo assim já recomendo. O delicioso "Está de  volta". O autor, o alemão Timur Vermes, parte de uma premissa inacreditável: o que aconteceria se, em pleno século XXI, Adolf Hitler acordasse, aos 56 anos (idade em que teria cometido suicídio) os arredores de Berlin, na Alemanha? O que ele faria? O resultado é uma ficção da melhor qualidade, bastante irônica e mesmo com toques de humor negro, que faz uma bela crítica ao culto ao entretenimento dos dias de hoje e a obsessão pelo marketing na política, algo que nem  fuhrer conseguiria imaginar em que se tornaria. 



Só o capítulo em que o redivivo Hitler se confronta com a programação atual da TV, repleta de programas de culinária (sim, até na Alemanha a filosofia foi trocada por um belo risoto) é hilária. Como este blog busca em grande parte selecionar temas ligados à esfera da Comunicação, fica a dica a todos.

Feliz 2014!                 
    

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O que vi, ouvi e li de bom em 2014 - parte 1

Foi um ano que passou muito rápido, mas com vários momentos marcantes, Um ano de Copa do Mundo em que as torcidas do Brasil e do mundo inteiro deram show, enquanto nosso time dava vexame contra a Alemanha. Um ano de eleições para presidente em que preponderou o baixo nível das acusações entre candidatos na televisão e seus eleitores nas redes sociais, estas novas esferas públicas onde qualquer um pode publicar opiniões. Os ânimos estiveram exaltados e vários "amigos" foram jogados pra escanteio no Facebook, apenas porque declararam seu voto em Dilma ou Aécio. Houve a novidade dos debates na televisão onde a figura do jornalista foi devidamente defenestrada - uma estratégia malandra das TVs, quando o embate entre adversários ganhou em drama mas perdeu em conteúdo. O resultado foi uma ida às urnas com a sociedade hiperpolarizada e sem conhecer de fato as propostas dos dois principais candidatos.

Mas deixemos as eleições para trás e pensemos na nossa sociedade digitalizada. Houve um momento nas copas anteriores em que era fácil encontrar um identificar um torcedor japonês: era aquele que estava tirando várias fotos dentro dos estádios, sem se preocupar como rolo de negativos. Negativos?! Isso ficou devidamente no passado com as câmeras digitais e os smartphones com câmeras cada vez melhores. Logo surgiriam os autorretratos ou "selfies" (a palavra do ano de 2013, segundo o dicionário Oxford). Tira-se foto de tudo, da nova roupa comprada para a festinha até de pratos com comida em restaurantes (argh!!). Viramos todos japoneses? Ou foi a sociedade que ficou mais egocêntrica? Há indícios para apostar na segunda hipótese.

2014 foi, entre tantos fatos relevantes e irrelevantes, o ano do aparecimento no Brasil, ainda na Copa do Mundo, do famigerado "pau de selfie", ou "Go Pobre" (sutil adaptação da caríssima câmera de selfies Go Pro). O pau de selfie (um bastão para fazer autorretatos, que pode chegar a até 1m) foi visto pela primeira vez como uma bizarrice nas arquibancadas dos estádios (perdão, arenas) brasileiros da Copa, trazidos por integrantes de torcidas estrangeiras. Muitos pensaram ser algo restrito á Copa, como as vuvuzelas da África do Sul, mas estavam enganados. Na semana passada, vi na praia em Arraial do Cabo, aqui no Rio, pelo menos duas pessoas usando o objeto. Entrei na internet intrigado e lá estava a manchete: "Às vésperas  do Natal, procura por 'pau de selfie' aumenta".  Isso diz muito de uma sociedade cada vez mais vítima do narcisismo eletrônico, onde a popularidade é marcada pelo número de "curtidas" em redes sociais. Sinal dos tempos.




Enquanto os selfies proliferam, eu aqui aproveito para compartilhar com vocês um pouco do que assisti, li e ouvi de bom em 2014. Claro que o tempo dividido pelo trabalho entre duas faculdades de Comunicação não deixou que eu aproveitasse ao máximo as opções culturais. Segue abaixo,portanto, uma lista curta e bastante pessoal, apenas para alimentar este blog no qual tão pouco publiquei nos últimos meses.

No cinema, o ano começou bem com o sensacional "O lobo de Wall Street", de Martins Scorsese, com uma atuação espetacular de Leonardo DiCaprio. Tivesse ele uma meia hora a menos, seria uma obra-prima. Ainda no primeiro semestre, o belo e pungente "Ela", de Spíke Jonze, com Joaquin Phoenix, a história de um homem solitário que se apaixona por um sistema operacional de computador com a voz de Scarlett Johanssen. Uma bela reflexão sobre a dependência tecnológica e o amor em tempos digitais.




Mais para o fim do ano, dois grandes filmes. Primeiro, "Boyhood - da infância à juventude", no qual o diretor Richard Linklater promove uma experiência única na história do cinema: acompanhar a vida de um menino dos 6 aos 18 anos. Mais que o prazer de acompanhar uma filmagem com a mesma equipe que levou 12 anos (coisa rara em tempos onde tudo é efêmero) o filme ainda discute a passagem do tempo e como ele nos afeta. E entre aqueles filmes que suscitaram discussões na saída dos cinemas está o genial 'Relatos selvagcens", filme argentino em episódios sobre indivíduos comuns confrontados com situações alarmantes ou até desesperadoras. Em geral, contamos até 10 e seguimos em frente. Em, "Relatos", os personagens enfrentam o inesperado, com consequências atordoantes.

Na televisão, duas ótimas minisséries na Globo: "Amores roubados" e "Dupla identidade". E uma ótima surpresa, o programa de humor "Tá no ar: a TV na TV", uma ideia da dupla Marcius Melhen e Marcelo Adnet em que o tema mais satirizado é a própria TV, seus programas e formatos. Uma ótima curtição metalinguística, com quadros que fizeram sucesso e que teve o mérito de finalmente mostrar o talento de Adnet na Globo.



No teatro, ótimas peças em reapresentações, Finalmente consegui assistir a "Arte", da israelense Yasmina Reza (mesma autora de "O deus da carnificina"), e dois musicais inspirados em grandes nomes da cultura e comunicação brasileiras: "Elis, a musical" e "Chacrinha". Este último, principalmente no segundo ato, quando a peça vira um show de auditório do Chacrinha, é uma das mais divertidas peças a que assisti nos últimos tempos, capturando bem o espírito anárquico e debochado do velho guerreiro.

Mas não posso esquecer do espetáculo em que estive com meu filho, na longínqua Cidade das Artes: "Os saltimbancos trapalhões", Pensando bem, não tinha como dar errado: a competência técnica da dupla Muller e Botelho, os atores, dançarinos e cantores escolhidos a dedo; as músicas de Chico Buarque que marcaram toda uma geração; e o talento de Renato Aragão pela primeira vez no palco de um teatro, acompanhado por Dedé Santana. Não foram poucos os adultos com lágrimas nos olhos nas cenas em que Renato estava presente.e roubando a cena. Ao final, a constatação de que o teatro musical brasileiro se encontra hoje entre os melhores do mundo.



Amanhã, segue o que curti de bom na música e na literatura.