Keith Haring morreu cedo, aos 31 anos. O artista se foi, mas sua arte, que pulou os muros da universidade e invadiu ruas e metrôs, está viva em exposições e também no cenário livre das ruas de Nova York, como o famoso painel Crack is Wack.

Saio da Caixa Cultural, onde rola a exposição, e caminho em direção ao Centro Cultural Justiça Federal, na Cinelândia. É meu refúgio em período de festivais: ali sempre tem filmes razoáveis e com lotação não esgotada - quem mora na Zona Norte e decide conferir um bom filme em Botafogo sabe que a chance de voltar pra casa após dar com um "esgotado" na fila do cinema é bastante grande.
O filme que quero ver já foi escolhido com antecedência. Trata-se de "Um espetáculo para o grande líder", documentário em tom fake dinamarquês que retrata a viagem de um grupo de atores à Coreia do Norte com o objetivo de apresentar uma peça, visando um intercâmbio cultural entre os dois países. No entanto, o tal "intercâmbio" é apenas um pretexto para penetrar num dos regimes mais fechados do mundo: a proposta do diretor Mads Brügger(e também narrador do filme), é apenas uma: expor e denunciar a ditadura coreana ao resto do mundo. Como? Através daquela que para ele é uma grande forma de contestação: a comédia.
Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance em 2010, o filme é na verdade um exercício de estilo no qual qualquer menção à objetividade ou imparcialidade deve ser jogada de lado. O tal espetáculo a ser preparado para o grande líder é uma comédia no estilo do teatro bufão, onde os únicos atores são dois jovens, Jacob e Simon, de origem coreana e que foram adotados por dinamarqueses desde cedo. Assim, o diretor e sua troupe conseguem entrar sem problemas na Coréia do Norte.
Sem problemas, mas com vigilância total. É escalada uma senhora que irá seguir os passos do grupo por onde forem. A senhora se afeiçoa por Jacob, o mais jovem dos atores, que também é deficiente, algo a princípio não tolerado na Coreia. Há uma cena hilária logo no começo, quando os dois atores se apresentam num parque coreano para uma comitiva de burocratas norte-coreanos - todos estes fazendo cara de pasmo total ante a bufonaria apresentada no palco, com direito até à versão de "Wonderwall", do Oasis, ao final. Pressentindo a tragédia, o diretor começa a falar em fazer as malas e voltar para a Dinamarca, quando...o espetáculo é aprovado!
Mas, na Coréia do Norte, nada é tão simples. Sob pretexto de tornar a peça mais palatável para o público norte-coreano, os burocratas do partido começam a dar palpites recorrentes no espetáculo, até quase o desfigurarem por completo. Apesar das tentativas de argumentação, o diretor segue as recomendações dos burocratas. Chega uma hora em que todos da equipe parecem estar representando: os dois atores, que preparam a peça sob vigilância, o diretor e equipe, que seguem seu roteiro de visitas aos marcos da ditadura norte-coreana, e até os burocratas, que representam, fidedignamente seu respeito supremo ao "grande líder", o ditador norte-coreano Kim Jong-il.
O mais impactante está por vir. Muito bem tratado pelo povo norte-coreano, o deficiente Jacob (de raízes coreanas, vale repetir) identifica-se com o povo e começa a questionar as reais intenções do diretor, que pelo menos na narração em off, trata sempre de desmistificar o cenário norte-coreano e sua ditadura socialista. Ao serem convidados a assistir uma marcha gigantesca de soldados coreanos, "em homenagem ao grande líder e contra o imperialismo norte-americano" Jacob recusa-se a bater palmas e a saldar com a mão estendida e punhos cerrados a marcha, deixando o diretor desconcertado. Os dois chegam a discutir: o ator manda o cineasta parar de mentir; ao que o diretor retruca que deve continuar mentindo, "para o bem do filme".
Ao final a peça finalmente é apresentada, com todos os cortes, modificações e censura efetuados pela equipe de burocratas. É um sucesso. Na despedida, a senhora responsável por acompanhar diariamente a equipe ensaia um choro e abraça Jacob. O diretor ainda deixa uma cartada final para este últimos momentos, ao tentar fazer Jacob perguntar à senhora norte-coreana onde ele poderia encontrar deficientes como ele, já que em toda a passagem pelo país ele não havia visto nenhum. Mas Jacob deixa a pergunta pela metade, e a senhora coreana dá uma resposta evasiva. Ao subirem os créditos, uma pergunta incômoda não pode deixar de ser feita: quem manipula quem na obra de arte? E na vida real?
Saí do cinema satisfeito com o instigante filme e com uma pequena dúvida: seria possível a arte de um artista como Keith Haring - homossexual, e que representou muito de sua arte nas ruas? Não teria sido mais um a ser perseguido pelos acólitos do "grande líder"? Fica a questão. A história já demonstrou que a arte pode se desenvolver em qualquer espaço, mesmo em regimes totalitários. Mas para que ela floresça de verdade e alcançe o público, é sempre bom optar pela democracia. Mesmo sendo esta, a exemplo da arte, sujeita às mais diversas "representações".
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