Você não acharia estranho se um gato que cruzou seu caminho e lhe seguiu até sua casa demonstrasse uma estranha fixação em música clássica, a ponto de deixar suspeitas inusitadas? Pois leia um trecho desta história:
"O animal, que havia poucos segundos dormia tranquilamente sobre o sofá, sentava-se agora absolutamente ereto, muito tenso, o corpo todo tremendo, orelhas em pé e olhos arregalados, olhando fixamente para o piano.(...)Louisa levou as mãos ao teclado e começou, de novo, a tocar Vivaldi. Dessa vez o gato estava preparado, e o que aconteceu, a princípio, foi que seu corpo ficou ainda mais tenso. Mas, à medida que a música crescia e se acelerava, naquele ritmo excitante da introdução à fuga, um olhar estranho, quase de êxtase, começou a se apoderar do rosto da criatura. As orelhas, até então eriçadas para cima, recuaram lentamente, as pálpebras se fecharam, a cabeça inclinou-se para um lado, e, naquele momento, Louisa poderia jurar que o animal estava, de fato, deleitando-se com a peça."
Estranho, não? Poderíamos até dizer que se trata de algo bizarro, inacreditável até. Sim, pois são adjetivos afins que podem, a princípio, definir os contos do escritor Roald Dahl, pouco conhecido no Brasil, mas dono de uma imensa popularidade na Inglaterra, onde viveu até sua morte, em 1990. Dahl era um mestre em mostrar como o ser humano era capaz de levar a cabo as atitudes mais perturbadoras para conseguir seus objetivos. Mas não estamos falando de um escritor de literatura de "terror". Qualquer rótulo soaria apressado para definir este exímio contista, capaz de escrever histórias recheadas de humor e ironia. O trecho que você leu acima é parte integrante de um dos onze contos do livro "Beijo,", lançado pela Editora Barracuda em 2008.
Se consultarmos o verbete da Wikipedia sobre Dahl, poderemos constatar que a imaginação do escritor, nascido no País de gales e filho de noruegueses, "foi muito estimulada pelas histórias que sua mãe contava sobre os trolls, as míticas criaturas das lendas norueguesas". Ouvir histórias fantasiosas e recheadas de suspense é um hábito milenar do homem. Há centenas de anos atrás, ainda na Idade Média, bem antes da invenção da escrita, era comum que pessoas se reunissem à noite, ao redor da fogueira, para ouvir de alguém histórias em que o fantástico, o suspense e o inesperado predominavam. Na história da literatura, este período literário é conhecido como a fase oral. Os primeiros contos publicados inspiraram-se nestas histórias curtas, soturnas e instigantes, geralmente com uma passagem inesperada ao final. Em "Beijo,", Roald Dahl leva ao leitor uma desconcertante seleção de contos que nos lembram os primórdios do estilo. Suas histórias são tão sedutoras e misteriosas que nos dão a sensação de reviver os momentos em volta da fogueira.
O autor é mais conhecido por seus livros para crianças, em especial "Charlie e a fábrica de chocolates", que daria origem ao filme "A fantástica fábrica de chocolates", levado aos cinemas por duas vezes, a última em 2005 por Tim Burton, com Johnny Depp no papel de Willy Wonka, o dono da misteriosa fábrica a qual nunca ninguém era visto entrando e saindo. A primeira versão, de 1971, com Gene Wilder como Wonka, e roteirizada pelo próprio escritor, é hoje um cult movie dos cinéfilos brasileiros. Quem viu, até hoje não esquece da história encantadora, mas com alguns momentos bem perturbadores.
Já em "Beijo,", lançado originalmente em 1960, o público adulto é o prestigiado com onze contos intrigantes e muito bem escritos. Não procure aqui alguma "mensagem", "ideologia" ou a busca por um estilo linguístico que rompa com algum padrão. Dahl interessa-se apenas em contar uma boa história, seja ela fantasiosa - como o conto em que um homem desenvolve uma estranha fixação por abelhas, a ponto de tentar curar a filha recém-nascida e doente com geléia real e, aos olhos da mulher, ir ficando estranhamente parecido com o animal; ou demasiadamente humana, como em "O prazer do pastor", no qual um vendedor de móveis antigos faz-se passar por um pastor para ludibriar moradores do campo e comprar destes móveis caríssimos a preços irrisórios. O final deste conto, no qual a ganância do falso pastor cairá por terra de forma hilariante, é genial.
Alguns contos, mais macabros, poderiam estar perfeitamente entre aqueles selecionados por Alfred Hitchcock para sua famosa série de televisão "Suspense", como "A dona da pensão" e "Porco". Mas os melhores são mesmo aqueles em que o humor e a ironia do escritor são a deixa para vinganças pessoais de maridos traídos ("A sra. Bixby e o casaco do coronel"), mulheres aparentemente submissas ("William e Mary") e ladrões que arquitetam o plano perfeito ("O campeão do mundo").
São nestes contos que Dahl demonstra sua maestria em desnudar o ser humano, ora atraído pelo ridículo, ora genial e muitas vezes capaz das atitudes mais inesperadas, como a esposa que, mesmo viúva, vinga-se do marido que em vida a proibia dos prazeres mais prosaicos. Agora, com o marido "morto", mas mantido consciente através de um experimento científico, dentro de uma bacia, apenas com um cérebro e um olho artificial, Mary tem sua chance. Segue a descrição:
Ao passar pela mesa, ela parou e se inclinou, uma vez mais, sobre a bacia: "A Mary está indo embora agora, amorzinho", disse. "Mas não se preocupe com nada, viu? Assim que for possível, nós vamos levá-lo de volta para casa, onde poderemos cuidar direitinho de você. E ouça, querido..." Nesse momento ela fez uma pausa e levou o cigarro aos lábios, para dar uma tragada.
Imediatamente, o olho brilhou.
Ela olhava diretamente para ele nesse momento e,bem ao centro, viu um ponto de luz pequenino mas brilhante, e a pupila contraída em uma minúscula cabela de alfinete, negra, em absoluta fúria.
(...) Então, muito lentamente, deliberadamente, ela pôs o cigarro entre os lábios e deu uma longa tragada. Inalou profundamente e segurou a fumaça nos pulmões por três ou quatro segundos; depois, de repente, fuuu, expeliu-a pelas narinas em dois jatos finos que se chocaram contra a água da bacia e espalharam-se sobre a superfície em uma densa nuvem azulada, envolvendo o olho.
Bem, no momento não lembro de outra vingança mais bizarra ou divertida...
Um comentário:
Obrigado pela indicação!
Sabe se a Barracuda já lançou os outros contos do Roald Dahl?
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