terça-feira, 9 de junho de 2009

Inveja dos Anjos e Rock n' Roll - Teatro com ideias e emoção

Duas peças em cartaz, assistidas recentemente, vão contra a ideia de que o público de teatro só está interessado em prestigiar comédias rasteiras e sexistas. "Rock n' Roll", de Tom Stoppard; e "Inveja dos Anjos", dramaturgia de Maurício Arruda e Paulo de Moraes, são espetáculos densos e que fazem pensar, embora não esqueçam da emoção - a plateia, embevecida, em ambos os casos sai do teatro orgulhosa de conferir um belo texto.

Confesso que de Tom Stoppard eu só conhecia o roteiro de "Shakespeare apaixonado" e pouca coisa mais. "Rock n' Roll" foi a chance de conferir um trabalho teatral deste que é considerado pela crítica um dos grandes dramaturgos em atividade no mundo. Tendo como ponto de partida a invasão dos tanques soviéticos na então Tchecoslováquia, no final dos anos 1960 - evento que ficou conhecido como a "Primavera de Praga", a peça nos leva a personagens como um professor universitário marxista que não abre mão de sua ideologia, mesmo com todas as mudanças no antigo bloco socialista; um jovem estudante de doutorado que, por sua vez, não abre mão de seus discos de rock; uma professora que luta para manter a dignidade enquanto enfrenta um câncer, entre outros personagens que instigam o espectador. A emoção maior está no relacionamento de décadas do velho marxista e o jovem professor e "roqueiro" - ali Stoppard demonstra como poucos a capacidade de externar em diálogos precisos a contradição das pessoas em lidar com aquilo que amam - seja a atitude revolucionária e comportamental do rock, seja a angústia e a impotência da mulher vitimada pelo câncer. Parece dizer em algunms momentos: a amizade está acima de ideologias. Ao fim, uma certeza: mesmo com todo o ativismo político, o que conta mesmo para nós, seres humanos, são as as relações que tivemos com aqueles que amamos ao longo do tempo.

Já em "Inveja dos Anjos", temos um grupo de personagens ora melancólicos, ora solitários, alguns até um tanto patéticos, reunidos à beira de uma estação de trem em alguma grande cidade do Brasil. Aliás, a cenografia, de autoria de Paulo de Moraes e Carla Berri, é um espetáculo à parte - trilhos de verdade atravessam o palco e até sobem pelas paredes. Diferente da apeça de Stoppard - um trabalho solitário do dramaturgo inglês - "Inveja" foi nascendo aos poucos. Como diz Paulo de Moraes no texto de apresentação da peça, personagens e espaço cênico foram surgindo ao mesmo tempo: "Os conflitos iam sendo dscobertos como palavra e já materializados como cena, como ação. Ou vice-versa. As vigas de aço do cenário, um trecho de ferrovia que corta todo o espaço de representação, se tornaram uma síntese segura para que a gente pudesse contar nossas histórias cheias de contradições, desesperos e epifanias." Entre os personagens, há a garçonete sonhadora que de repente recebe a visita do homem que a abandonara há dez anos; o escritor autoconfiante que se apavora com a chegada de uma filha que ele nunca desconfiara da existência; o carteiro que lê as cartas de pessoas antes de entregá-las e separa aquelas com notícias ruins; a mulher que teve os melhors momentos da vida abreviados pela necessidade de cuidar da mãe com problemas mentais... Os encontros e desencontros desses personagens são o cerne da peça, realizados a partir de uma pesquisa formal que teve início no poeta Rainer Maria Rilke ("Se eu gritar, quem poderá ouvir-me na hierarquia dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente").

Em comum nas duas peças está o uso muito bem feito de trilhas sonoras que atravessam a história do rock e "comentam" as cenas, com músicas de Sid Vicious, Pink Floyd e Rolling Stones (em "Rock n' Roll"); Janis Joplin, Beatles e Radiohead (em "Inveja dos Anjos). E não vou esquecer por um bom tempo da atuação de duas grandes atrizes: primeiro, Gisele Fróes - que faz dois papéis na peça de Tom Stoppard, equilibrando com uma sutileza ímpar a professora com cãncer e sua filha iludida e angustiada vinte anos depois. E, em "Inveja dos Anjos", a atuação de Patrícia Selonk como Cecília, papel que lhe rendeu o prêmio Shell de melhor atriz.

Enfim, dois bons motivos para ir ao teatro. E não apenas para se divertir.

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