quinta-feira, 18 de junho de 2009

O discurso de Sarney e o culto à personalidade

Look into my eyes, what do you see?
Cult of personality
I know your anger, I know your dreams
I've been everything you want to be
I'm the cult of personality
Like Mussolini and Kennedy
I'm the cult of personality


"Cult of personality", Living Colour

Uma vez, faz alguns anos, eu estava em Salvador, hospedado na casa de amigos, e num dia chuvoso nossos anfitriões resolveram nos levar a um passeio num shopping center. Ao chegar no local, me surpreendi como ali era comum dar nome a alguns setores internos. Havia o "Corredor Antonio Carlos Magalhães", a "Praça de Alimentação ACM", o "Piso Antonio Carlos Magalhães Filho", o "Espaço Antonio Carlos Magalhães Neto" e por aí vai. Como ACM ainda estava vivo, pensei: culto à personalidade é isso aí. Um exemplo da construção do culto a figuras públicas está no patético discurso de José Sarney esta semana no Senado. Colocando-se acima do bem e do mal, o senador disse considerar "uma injustiça o país julgar um homem com tantos anos de vida pública" - situação agravada mais tarde pela infeliz declaração de apoio do presidente Lula em defesa de Sarney, afirmando que o presidente do Senado "não pode ser tratado como uma pessoa comum".

Não? Como assim? O que explica estas atitude típicas de quem se acha livre de contestações? No Wikipedia há uma boa e sucinta definição: o culto à personalidade seria típico de regimes totalitários - embora também possam existir em democracias -, e pode ser entendido como uma estratégia de propaganda política baseada na exaltação das virtudes - reais ou supostas - do governante, bem como da divulgação positiva de sua figura. Eu acrescento: positivista, paternalista, amantíssima, etc.

Um exemplo claro de culto á personalidade está na figura do general Rafael Trujillo, presidente da República Dominicana nos anos 1960, um entre tantos tiranos que infestaram a América Latina com seus regimes ditatoriais. O déspota chegou a mudar o nome de Santo Domingo para Ciudad Trujillo enquanto esteve no poder. Em toda a parte do país havia referências ao ditador, e a tirania chegou ao ápice quando todas as crianças nascidas na República Dominicana eram obrigadas a ter - pasmem! - Trujillo, o "grande pai", como padrinho. Eram cerimônias coletivas nas quais o governo mostrava sua força e poder. Duvida? Pois dê uma lida no livro "A festa do bode", monumental romance de Mario Vargas Llosa, que conta esta e outras histórias de abuso de autoridade. Aliás, no começo do seu governo, diz a lenda que havia uma placa na entrada da capital do país, com os dizeres "Deus e Trujillo". No auge do culto à personalidade, a placa teria sido mudada para "Trujillo e Deus". Na certa, o ditador achava que até Deus deveria lhe prestar continência...

Voltemos à Sarney e o culto à personalidade criado por ele no Maranhão, um dos estados mais pobres do país e comandado pela família do presidente do Senado há mais de 40 anos. Leia abaixo está série de curiosidades sobre o estado, pinçadas pelo jornalista Luis Lara Resende e publicadas no "Jornal da ImprenÇa" (assim mesmo) de Moacir Japiassu, dentro do site Comunique-se. A depender da família, nenhum maranhense jamais esquecerá do nome Sarney.

No Maranhão é assim:

Para nascer, Maternidade Marly Sarney;

Para morar, escolha uma das vilas:
Sarney, Sarney Filho, Kiola Sarney ou Roseana Sarney;

Para estudar, há as seguintes opções de escolas: Sarney Neto, Roseana Sarney, Fernando Sarney, Marly Sarney e José Sarney;

Para pesquisar, apanhe um táxi no Posto de Saúde Marly Sarney e vá até a Biblioteca José Sarney, que fica na maior universidade particular do Estado do Maranhão, que o povo jura que pertence a um tal de José Sarney;

Para inteirar-se das notícias, leia o jornal O Estado do Maranhão, ou ligue a TV na TV Mirante, ou, se preferir ouvir rádio, sintonize as Rádios Mirante AM e FM, todas do tal José Sarney.

Se estiver no interior do Estado, ligue para uma das 35 emissoras de rádio ou 13 repetidoras da TV Mirante, todas do mesmo proprietário;

Para saber sobre as contas públicas, vá ao Tribunal de Contas Roseana Murad Sarney (recém-batizado com esse nome, coisa proibida pela Constituição, lei-maior que no Estado do Maranhão não tem nenhum valor);

Para entrar ou sair da cidade, atravesse a Ponte José Sarney, pegue a Avenida José Sarney e vá até a Rodoviária Kiola Sarney. Lá, se quiser, pegue um ônibus caindo aos pedaços, ande algumas horas pelas "maravilhosas" rodovias maranhenses e aporte no município José Sarney.

Não gostou de nada disso? Então quer reclamar? Pois vá ao Fórum José Sarney, procure a Sala de Imprensa Marly Sarney, informe-se e dirija-se à Sala de Defensoria Pública Kiola Sarney...


Muitos ditadores usaram e usam o poder dos meios de comunicação para amplificar seus desmandos e delírios de grandeza. Quando a imprensa não está ao lado deles, tentam sempre amordaçá-la, silenciá-la, corrompê-la com verbas públicas e demais tentações. (Recentemente a mulher de um político investigado ofereceu um carro ao jornalista da Revista Época para que ele não divulgasse um escãndalo associado ao conjuge).

No entanto, o grande número de cartas dos leitores nos jornais, em repúdio ao discurso de Sarney é um sintoma de que cada vez mais leitores e cidadãos estão insatisfeitos com os escãndalos e as contratações sem concurso de sobrinhos, genros, primos e netos da "grande família" maranhense para cargos públicos.

Desconfiar sempre de candidatos a profetas, gurus e salvadores da pátria é um saudável exercício de cidadania. Desconfie de qualquer culto à personalidade - seja do político tirano, ou até mesmo de seus ídolos no rock. Acreditar em si mesmo - esta é a saída.

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